O debate sobre a necessidade de uma reforma administrativa no setor público tem voltado ao centro das atenções como uma das principais reformas a serem pautadas no pós-pandemia, em conjunto com a reforma tributária. De modo geral, o debate foca no serviço público federal devido à disparidade salarial em relação ao setor privado. No entanto, não é possível ignorar a situação dos estados que é tão ou mais grave que a situação da União, como será demonstrado abaixo.
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O Caso Federal
Em relação ao setor público federal, o diagnóstico não é novo e boa parte dos problemas são bem conhecidos. Segundo estudo do Banco Mundial, servidores públicos têm um prêmio salarial superior em 19% em relação a trabalhadores em funções equivalentes no setor privado. Servidores federais têm esse prêmio elevado para 96%. Além disso, os salários iniciais das carreiras federais já se encontram em patamares significativamente elevados e a progressão ocorre predominantemente de modo automático com base no tempo de carreira, desincentivando bons servidores a elevarem sua entrega aos cidadãos. Como resultado, o mesmo estudo aponta que 44% dos servidores do Poder Executivo Federal têm salários superiores a R$ 10.000,00 por mês; 22% superiores a R$ 15.000,00; e 11% recebem mais do que R$ 20.000,00 mensais.
Se, por um lado, o diagnóstico acima está correto e apresenta desafios que merecem ser enfrentados quando da discussão da reforma administrativa pelo Congresso Nacional, por outro, ele ignora uma peculiaridade do setor público federal em relação aos demais. No funcionalismo federal, há décadas, já não existem incorporações de gratificações de chefias ou de vantagens temporais tais como anuênios, triênios, quinquênios, avanços, entre outras. Os planos de carreira, apesar dos problemas apontados acima, são mais transparentes e demonstram, de fato, quanto um servidor receberá de remuneração em cada etapa.
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Já alguns estados, porém, além de conviverem com problemas semelhantes de planos de carreira automáticos e pouco meritocráticos, preveem, em seus estatutos, inúmeras vantagens temporais que podem elevar demasiadamente a remuneração de um servidor de um ano para o outro para muito além do previsto nos planos de carreira, independentemente da qualidade do trabalho do servidor ou da situação fiscal e da capacidade financeira do ente federado.
O Problema dos Estados: O Caso do Rio Grande do Sul
Como exemplo, podemos citar o caso do Rio Grande do Sul, estado que vem fazendo reformas estruturais e pondo um fim a algumas distorções graves. O estado concedia a seus servidores os chamados triênios, que adicionavam de 3% a 5% à remuneração do servidor a cada três anos de serviço. Somado a isso, o estado também concedia os avanços, que adicionavam 15% à remuneração do servidor que completava 15 anos de serviço e 25% à remuneração do servidor que completava 25 anos. Ambas as vantagens temporais – triênios e avanços – são cumuláveis, fazendo com que os adicionais totais chegassem praticamente a dobrar a remuneração dos servidores.
Reforma administrativa
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A distorção fica ainda mais clara quando, mesmo em meio a uma grave crise econômica como a atual, em que milhões perdem seus empregos, servidores que atingissem 25 anos de serviço receberiam o adicional de 25% automaticamente. Dessa forma, os salários ganhavam um aumento substancial ainda que a receita pública estivesse em queda livre. Além disso, servidores da ativa que ocupassem temporariamente cargos de chefia e recebessem gratificações por isso poderiam incorporá-las aos seus vencimentos, fazendo com que continuassem a recebê-las mesmo após deixarem o posto, inclusive quando passassem para a inatividade. Como consequência da incorporação de tais inúmeras vantagens nas aposentadorias, o Governador Eduardo Leite apontou, no programa Roda Viva de 20 de julho, que, apesar de Rio Grande do Sul e Paraná terem populações e economias semelhantes, o déficit da previdência gaúcho representa o dobro do déficit paranaense. Dessa forma, seria impossível para qualquer governador ou chefe de Poder controlar eficientemente suas contas de pessoal, pois todas as vantagens independiam de sua anuência. Assim, além de conviver com problemas semelhantes aos federais, a Administração Pública gaúcha demonstra como muitos estados apresentam problemas adicionais ainda mais graves.
O Rio Grande do Sul realizou sua reforma administrativa e previdenciária no início de 2020, mas muitos estados ainda contém distorções semelhantes em seus estatutos. Não por acaso, são os estados que se encontram em uma situação fiscal mais deteriorada.
O Caso dos Estados: Lei de Responsabilidade Fiscal e Gastos com Pessoal
O contraste entre União e Estados fica evidente quando comparamos os respectivos gastos com pessoal segundo os limites da Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF). A LRF limita os gastos de pessoal da União em 50% da sua receita corrente líquida. Apesar da despesa de pessoal ser bastante relevante como a terceira maior despesa federal, atrás apenas de Previdência Social e juros da dívida, dados do Tesouro Nacional demonstram que União encontra-se relativamente confortável em relação ao limite da LRF.
Por outro lado, as despesas de pessoal são a maior despesa de todos os 26 estados e do Distrito Federal. Absolutamente todos gastam mais de 50% das respectivas receitas com pessoal. Mesmo com a LRF sendo mais benevolente com estes, colocando o limite máximo gastos em 60% da receita corrente líquida, ela prevê que restrições serão aplicadas ao ente quando ele ultrapassar o limite prudencial (95% do limite total, isto é, 57%).
Nesse sentido, estudo realizado (2019) pela Instituição Fiscal Independente (IFI) apontaram que 18 estados já haviam ultrapassado o limite prudencial ainda em 2017 e que cinco estados já gastavam algo próximo a 70% de suas receitas com pessoal (RS, RJ, RN, MS e MG).
Adicionalmente, a Secretaria do Tesouro Nacional (STN) apontou, em estudo recente (também de 2019), que a maioria dos estados apresenta erros na contabilização dos gastos de pessoal em seus relatórios. Assim, a STN apresentou os dados corrigidos, demonstrando que nada menos do que 11 estados estouraram o elevado limite máximo de gasto de pessoal e que 21 dos 27 já ultrapassaram o limite prudencial.
A situação ainda pode se agravar, pois devido às vantagens temporais e planos de carreira automáticos, há pouco que os governadores podem fazer para melhorar a situação no curto-prazo. Além disso, devido à mudança demográfica, os estados gastam cada vez mais recursos com inativos, sobrando pouco para contratar novos servidores para substituí-los.
O Caso dos Estados: Previdência
No mesmo estudo, a STN aponta que o custo médio do déficit da Previdência para os Tesouros estaduais foi de 15,9% de suas receitas em 2018. Apesar de já significativo, este custo tenderá a crescer, uma vez passamos por uma transição demográfica, uma recessão econômica e muitos estados ainda não realizaram suas reformas previdenciárias.
Adicionalmente, a IFI aponta que, considerando todos os estados da federação, o número de servidores ativos já é quase igual ao número de inativos (apenas de 1,13 ativo para cada inativo). Em quatro estados, já existiam mais inativos que ativos: Rio de Janeiro, Santa Catarina, Minas Gerais e Rio Grande do Sul.
Já o Banco Mundial salienta que vinte dos 27 estados já estão atrasando pagamentos de salários de servidores estatutários ou de terceirizados. Com a crise econômica gerada pela pandemia do novo coronavírus, a paralisação de novos concursos e as crescentes aposentadorias dos servidores, muitos estados rumam para o colapso na prestação de serviços, uma vez que já agonizam para pagar suas atuais obrigações e não terão recursos para substituir os servidores que se aposentam.
Uma Luz no Fim do Túnel?
Apesar dos graves problemas citados, há boas notícias. A primeira é que a reforma da previdência, apesar de não ter alterado as previdências estaduais diretamente, vedou a incorporação de gratificações temporárias aos vencimentos dos servidores, impedindo de levá-las para as aposentadorias. A segunda é que a Assembléia Legislativa do Rio Grande do Sul deu um bom exemplo ao aprovar, no início de 2020, a reforma administrativa e previdenciária do estado, acabando com as vantagens temporais automáticas e outras distorções. No entanto, a maioria dos estados ainda encontra-se pressionada por graves crises fiscais e não apresenta capacidade de reformar suas estruturas. Brasília pode liderar este debate e, diferentemente da reforma da previdência de 2019, aprovar diretrizes gerais que acabam com distorções de maneira horizontal para todos os Poderes e Entes. Nesse sentido, deveriam ser aprovadas ainda em 2020 as PECs 186 e 188, já em discussão no Senado Federal, que corrigem algumas distorções do sistema atual.
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Com a aprovação dessas PECs, daríamos um enorme passo na direção de colocar o país de volta nos trilhos e devolveríamos à União, aos Estados e aos Municípios a capacidade de contratar e recompensar adequadamente os servidores mais empenhados e competentes, além de continuar investindo nos serviços fundamentais para a população.