A minuta de uma proposta de reforma da Previdência elaborada pelo governo Bolsonaro estabelece novas regras para enfrentar o crescente rombo dos regimes próprios dos servidores públicos. De acordo com o texto, quando a receita não for suficiente para arcar com os compromissos futuros, o chamado déficit atuarial, os servidores terão de fazer contribuições extraordinárias. Hoje, essa despesa é paga pelo Tesouro, ou seja, recai sobre toda a sociedade. Além disso, a minuta prevê que a alíquota do recolhimento previdenciário normal poderá passar a ser progressiva, variando de acordo com o salário recebido, como ocorre com o Imposto de Renda – quanto maior o rendimento, mais alto o percentual. Pela proposta, as mudanças nas contribuições valeriam para todo o funcionalismo vinculado aos Executivos: civis e militares, ativos, inativos e pensionistas.
O governo também estuda reduzir a contribuição dos trabalhadores do setor privado (INSS). A alíquota atual de 8% para quem ganha até R$ 1.751,81 deverá baixar para 7,5%. Em contrapartida, quem tem renda acima disso poderá ter o percentual elevado de 11% para 14%.
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Segundo interlocutores, o objetivo da medida é dar uma demonstração clara de que a reforma será justa: quem ganha menos paga menos e quem ganha mais paga mais. Hoje, as alíquotas previdenciárias pagas pelos trabalhadores do setor privado variam entre 8% a 11%, de acordo com a faixa salarial. Quem ganha até R$ 1.751,81 recolhe 8%; entre R$ 1.751,82 e R$ 2.919,72, 9%; e entre R$ 2.919,73 e R$ 5.839,45 (teto do INSS) e acima deste valor, 11%. Os empregadores recolhem 20% sobre a folha de pagamento.
A alteração das alíquotas do INSS não está prevista na minuta da reforma. Integrantes do governo afirmaram, contudo, que o texto terá alterações.
R$ 7 trilhões em 2018
Estudo produzido em 2018 pelo economista e consultor legislativo do Senado Pedro Fernando Nery, citando dados do Tesouro Nacional, dá uma dimensão do rombo da Previdência dos servidores: R$ 7 trilhões para o conjunto de regimes próprios. No caso da União, o desequilíbrio atuarial é de cerca de R$ 1,5 trilhão. Nos estados, a situação é mais dramática, chegando a quase R$ 5 trilhões. Já nos municípios, o rombo é de R$ 800 bilhões.
Flávio Rodrigues, advogado especialista em Previdência do Bocater, Camargo, Costa e Silva, Rodrigues Advogados, explica que, de acordo com a minuta, a adoção da contribuição extra seria compulsória em caso de déficit, mas o valor ficaria a cargo de cada ente federativo, de acordo com seu desequilíbrio atuarial.
As contribuições extraordinárias terão de ser definidas em lei, e as alíquotas poderão ser diferenciadas, dependendo da situação funcional do servidor – se é ativo, aposentado ou pensionista -, do seu histórico contributivo e da regra aplicada para calcular o direito à aposentadoria ou pensão.
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– Um servidor que se aposentou como juiz, por exemplo, mas que exerceu dez anos dessa função e contribuiu outros 25 anos como professor do ensino médio, sua atividade anterior, pode ter uma alíquota extra mais alta, pois a maior parte do tempo de contribuição foi sobre um salário inferior ao da aposentadoria – explica Rodrigues.
Para os aposentados e pensionistas, essa contribuição extra incidiria sobre a parcela dos proventos e pensões que supere o salário mínimo.
O advogado Fábio Zambitt, especializado em Direito Previdenciário, explica que cada ente terá de enviar projetos de lei para o Legislativo prevendo a criação da alíquota, o tempo de aplicação e a motivação para a sua adoção:
– Levando-se em conta que quase todos os regimes previdenciários de servidores estão atuarialmente deficitários, o incremento de custeio poderá ser imediato, após a aprovação da reforma. A proposta não estabelece teto, logo, a contribuição extraordinária pode ser em patamares bem elevados, definidos em lei.
Rodrigues ressalta que esses desequilíbrios podem ser passageiros, então as contribuições extras vigorariam por períodos determinados.
Rudinei Marques, presidente do Fórum Nacional Permanente de Carreiras Típicas de Estado (Fonacate), diz que a entidade tem dialogado com o novo governo, desde dezembro, para fazer ajustes que tornem a reforma “menos dura” para o funcionalismo:
– É claro que estamos dispostos a entrar na reforma, mas é preciso ter razoabilidade. O nível de endividamento do setor público é grande, e estados estão parcelando os salários. Muitos servidores estão lutando para sobreviver. Aumentar as alíquotas refletirá em diminuição do salário real e pode gerar caos social.
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Questionamentos no STF
Para além do lobby do funcionalismo, o advogado Rodrigues explica que o aumento das alíquotas pode ser considerado inconstitucional:
– A alíquota extraordinária terá de ser baixa para não ter efeito confiscatório, algo que o Supremo já disse que é inconstitucional.
Nos últimos anos, o Supremo Tribunal Federal tem julgado ações que questionaram a sobreposição de taxações sobre os salários dos servidores.
– Se observarmos o histórico das decisões sobre confisco tributário feitas pelo Supremo, quando a soma das contribuições fica próxima a 50%, é vista como confisco. Essa soma considera o desconto do Imposto de Renda e a taxação para a Previdência. Vamos aguardar como isso será analisado. Hoje, é comum a Justiça analisar justificativas para aplicação de contribuição extra – comenta o advogado Rudi Meira Cassel.
Quanto às contribuições atuais, a minuta traz a possibilidade de a alíquota se tornar progressiva, de acordo com o salário do servidor, com aplicação de descontos maiores para quem ganha mais. Hoje, os descontos previdenciários são estabelecidos de forma igualitária, sem diferenciações. No estado do Rio, a alíquota é de 14% para todos. No conjunto dos estados, ela vai de 11% a 14,25%.
Outra possibilidade aberta pelo texto para enfrentar o déficit da Previdência é a criação pelos entes de um fundo de capitalização à parte, desvinculado do órgão gestor da Previdência, a exemplo do existente no município do Rio, o Funprevi. Esse fundo receberia, além das contribuições regulares dos servidores, aplicações para rentabilizar e viabilizar os pagamentos futuros, como receitas da Dívida Ativa, da venda de imóveis e de outros bens e direitos que possam gerar rendimentos.
Fonte: “O Globo”