Passou finalmente no Senado a reforma da Previdência , que chegou até aí muito ferida, se arrastando e ainda recebendo mordidas de todo lado. Uma epopeia de sofrimento que começa nos anos 1990.
Ao final, entretanto, sua sagração não foi uma apoteose, mas um crédito de confiança concedido ao ministro da Economia, que colocou este tema no topo da sua lista. Não era exatamente o maior desejo do presidente. Atende-se o ministro, mas os senhores parlamentares (e também o presidente) querem ver os resultados, pois a vida segue, o ministro ficou devedor, há 12 milhões de desempregados.
A situação lembra uma piada canadense contada pela escritora Margaret Atwood, que o leitor brasileiro conhece pelo extraordinário “Conto da Aia” (livro e série de TV) trabalhada num livro anterior dela, chamado “Payback”, e que trata do modo como lidamos com dívidas e obrigações, financeiras ou não.
A piada é a seguinte: dois canadenses se encontram na rua.
— Lindo dia, hoje, não?
— Vamos pagar caro por isso amanhã.
Sim, numa terra como o Canadá, onde há tanta instabilidade meteorológica, é assim que funciona. Amanhã o tempo vai ser feio, a culpa será do sol que fez hoje.
Agora vamos pensar numa terra cheia de instabilidade econômica como o Brasil: ao revés da piada, foi criada uma expectativa pela qual a deflagração das reformas traria um clima de otimismo e uma recuperação mais rápida dos empregos e do PIB.
Mas não era bem assim, explica o ministro Guedes. A meteorologia é uma ciência complexa.
Era preciso que fossem várias reformas, todas em versões mais viçosas que as que estão aparecendo depois de aplicados os filtros da viabilidade palaciano-parlamentar.
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As reformas em cogitação são as mesmas de 20 ou 30 anos atrás, encalhadas desde então. Estamos acertando o “para trás. São reformas “já maduras”, sobre as quais, inclusive, se ouve que “há consenso”, o que soa como um oximoro. Ou são milagres de articulação política ou é por que não mudam grandes coisas. E se não há gás lacrimogêneo, e não há descontentes, alguma coisa se perdeu no caminho.
A conclusão parece clara: o Brasil ficou muito complicado para reformas com aquele jeitão de vendaval modernizante, tipo começo da República, geralmente descritas como “destruição criadora”. Veja-se a Revolta da Vacina, ou a luta de Antônio Conselheiro contra o sistema métrico decimal. Não vamos ter nada disso novamente.
Mesmo com respeito às causas perdidas, é forte a nossa predileção pela conciliação. O Brasil não gosta desses turbilhões de mudança, e já tivemos, recentemente, muito atrito no terreno político. Compreensível que não se queira criar mais polêmica.
O presidente Sarney também não quis reformas na economia pois entendia haver sérios problemas de governabilidade na Nova República. Em seu último mês de governo a inflação bateu 82% ao mês. A economia não espera.
Bolsonaro não é um tipo cordial, bem se sabe, mas no terreno das reformas econômicas, a cordialidade em Brasília (Executivo e Legislativo) não discrepa do que tivemos no passado. E assim, estamos condenados a passar reformas de baixa octanagem e que minimizam conflitos. Alguns temas, inclusive — abertura e reforma trabalhista, para não falar em privatizações dos peixes grandes — parecem afastados, a despeito da insistência da equipe econômica. O presidente não foi eleito para avançar essas pautas.
É claro que isso não quer dizer que vai dar tudo errado na economia. De jeito nenhum. Tem muito remédio no sistema, o organismo está reagindo, vai ter crescimento sim, mas no ritmo de sempre, sem “destruição criadora” ou mudanças de paradigma, mas num contexto de incrementalismo gradualista, pelo qual vamos fazendo modernizações em ritmo lento, pelas quais as coisas velhas não ficam obsoletas, nem quebram, elas são sempre aposentadas, com todos os direitos garantidos, inclusive nossas indústrias nascentes que desfrutam de proteção há várias décadas, e que merecem uma aposentadoria tranquila.
Fonte: “O Globo”, 27/10/2019