A reforma tributária está na agenda de debates há mais de duas décadas. A gestação do atual sistema tributário brasileiro na Assembleia Nacional Constituinte de 1988 foi pautada pelo foco quase exclusivo na partilha da receita tributária entre níveis de governo e entre regiões, com alheamento total da União no debate. Naquela arena, Estados engalfinhavam entre si e com os Municípios pela divisão do butim tributário, especialmente da fatia de receita disponível então pertencente à União. Nesse contexto não se poderia esperar um modelo que atendesse aos princípios que devem nortear um sistema tributário decente. Mas se já nasceu torto, o sistema foi piorando ao longo dos anos e hoje se tem a sensação de que a cada edição do diário oficial ele piora.
Além do aumento persistente da carga de impostos são criadas cotidianamente gambiarras tributárias bizarras e obrigações acessórias estapafúrdias, sempre com o foco exclusivo no aumento de arrecadação a qualquer custo, sem qualquer preocupação com racionalidade, eficiência ou custo de conformidade. E assim nasceu o Frankenstein tributário que todos conhecemos e que fere de morte a competitividade do setor produtivo nacional.
O debate tributário ao longo dos anos, especialmente da tributação indireta, calcanhar de Aquiles do sistema, tem sempre começado com propostas ousadas, amplas, para em seguida encolher para a reforma do Imposto sobre Circulação de Mercadorias (ICMS) e, por fim, definhar para a revisão da tributação interestadual desse imposto, vale dizer, para a mitigação da guerra fiscal.
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Atualmente, assiste-se a um novo debate tributário que começa onde os anteriores acabaram: a “reforma” que está à mesa trata exclusivamente da guerra fiscal e foi gestada por conta da ameaça de o Supremo Tribunal Federal (STF) aprovar sumula vinculante sobre a inconstitucionalidade dos benefícios de ICMS concedidos do contexto da guerra fiscal.
Sem modulação, essa decisão do STF terá consequências catastróficas para os Estados guerreiros e principalmente para as empresas beneficiadas ilegalmente, que terão de recolher todo o ICMS pretérito não pago.
Surgiu, então, uma janela de oportunidade para a busca de solução da guerra fiscal. De um lado, os Estados guerreiros sob ameaça da súmula vinculante do STF, precisam resolver o passado via remissão dos débitos do ICMS exonerado de forma ilícita. De outro, os Estados contrários à guerra fiscal querem resolver o futuro – o fim da guerra fiscal – via redução das alíquota interestaduais do ICMS.
Somam-se a isso outros interesses dos Estados, como a mudança na indexação de suas dívida para com a União e a partilha do ICMS nas operações interestaduais via comércio eletrônico. Dessa conjugação de interesses concertou-se um pacote de medidas interdependentes, consubstanciadas em um “protocolo de intenções” no Conselho Nacional de Política Fazendária (Confaz) que levado adiante atende, ainda que parcialmente, o interesse de todas as partes.
Essa dura negociação entre Estados foi, entretanto, atropelada pela recente aprovação, pelo Senado Federal, de um Projeto de Lei Complementar que concede anistia aos débitos fiscais decorrentes da guerra fiscal além de legitimar e ampliar os benefícios ilegais por até 15 anos, sem, contudo, condicionar tais medidas à redução da alíquota interestadual do ICMS. Atende, assim, apenas a um dos lados da mesa de negociação. Não resolve o problema da guerra fiscal – ao contrário, legitima-a e a amplifica – e põe por terra a negociação duramente urdida no Confaz.
Se tal projeto for aprovado também pela Câmara dos Deputados, os Estados guerreiros podem simplesmente abandonar a mesa de negociação, de vez que terão resolvido seu problema do legado (a remissão dos débitos de ICMS decorrentes de benefícios espúrios) sem abrir mão da guerra fiscal e da receita interestadual do ICMS.
É triste constatar que a tão esperada reforma tributária cinge-se hoje ao debate sobre como deve ser a guerra fiscal nos próximos 15 anos e não se fala mais em construção de um novo modelo tributário que possa ser chamado de sistema.
Fonte: O Estado de S. Paulo, 19/5/2015
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