O Estado brasileiro agoniza. Prédios públicos estão em situação precária, reflexo de décadas em que cortes nos gastos com a manutenção das instalações físicas é o padrão para conter as despesas obrigatórias que só crescem. Investimentos em tecnologia, com seus consequentes ganhos de produtividade, vêm passando ao largo do serviço público, apesar de tantos avanços e do seu recente barateamento. A realidade aqui é a de sistemas obsoletos, equipamentos ultrapassados e uma enorme dificuldade de se ganhar transparência e rapidez nos processos. Não sem razão, a burocracia estatal se mantém no topo da lista de pesadelos de qualquer cidadão brasileiro. Depende-se assim, cada vez mais, de recursos de organismos multilaterais para que se tenha acesso a recursos para um investimento aqui ou outro ali, em projetos não necessariamente integrados e consistentes entre si. Segue-se daí todo um sistema de governança fraco – quando não inexistente – documentado em excelente trabalho elaborado pelo Tribunal de Contas da União (TCU), que mostra quão atrasados estamos, em particular nos órgãos que gerem orçamentos mais expressivos. Não se trata mais de não conformidade e sim de ausência de um mínimo de governança que garanta que os processos decisórios sejam corretos, transparentes e coerentes com os planos e resultados almejados pelas políticas públicas.
No tema do investimento público, há muito o Brasil desistiu do setor público. Variável de ajuste numa crise fiscal que se agrava a cada ano que passa, é ele quem sofre há quase uma década, quando acordamos para o colapso das contas públicas brasileiras. A segunda metade dos anos 2000 mostrou uma deterioração ainda maior e mais acelerada, consequência do colapso fiscal dos subnacionais, em particular dos Estados. Aqui os reflexos aparecem de diferentes formas: viadutos desabam; museus ardem; escolas caem aos pedaços; chuvas causam danos crescentes. Além disso, gargalos de infraestrutura aparecem a cada soluço de crescimento. Pena que a reação majoritária dos gestores públicos, ao contrário do enfrentamento dos problemas, seja a de correr para Brasília e pressionar o Tesouro Nacional por novos empréstimos. Como se isso fosse solução – e não protelação – e como se a União não estivesse, também ela, tentando se equilibrar. Exceção louvável é o governador Eduardo Leite, que aprovou uma Reforma Administrativa que ataca o maior problema, a saber os gastos com pessoal.
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Mas é justamente na gestão de pessoas no serviço público que tudo isso desemboca – quando não é a sua ausência a própria a causa – e atinge em cheio o cidadão brasileiro, primeira e maior vítima desse processo contínuo de deterioração da máquina pública. Na sequência sofre o servidor público, que vive os reflexos perversos de ter tido seus pleitos plenamente atendidos por tantos anos.
Essas vitórias, conquistadas à base de muita pressão – e graças à ausência de discernimento de um Parlamento historicamente sensível aos gritos das galerias ou à conversa ao pé de ouvido nos gabinetes, representam a força dos sindicatos. Mas hoje também representam a derrocada do serviço público e da imagem dos servidores perante a sociedade brasileira.
A conexão é clara, mas precisa ser explicitada. A deterioração da qualidade do serviço público no Brasil não é culpa do servidor, mas sim do modelo que foi forjado por décadas de pleitos defendidos – e alcançados – por cada categoria. O problema não está no pleito – muitas vezes legítimo –, mas sim no seu atendimento sistemático e pleno por quem deveria zelar pelo interesse do todo e não apenas dos mais loquazes. Promoções e progressões automáticas e cada vez mais aceleradas, salários iniciais elevados, não regulamentação da demissão por baixo desempenho, reservas de mercado, isonomias, paridades, etc. As consequências estão aí: serviço público de baixa qualidade; produtividade reduzida e decrescente; gastos elevados com salários e benefícios; péssimas condições de trabalho e desmotivação dos servidores. Além da ausência de diferenciação e valorização da grande maioria de competentes servidores públicos.
O Brasil já acordou para a necessidade da reforma administrativa. O apoio popular ao tema se reflete em pesquisas de opinião pública e em manifestações nas redes sociais. A sociedade civil está pronta para ajudar no esclarecimento e na construção de consensos. Só falta o presidente Bolsonaro entender e assumir a liderança desse projeto. Mas ele vacila e insiste em fechar os olhos para uma demanda e um interesse que é de todos e que deverá ser, inclusive, dos próprios servidores. Reforma administrativa não é contra o servidor público. É a favor do Brasil.
Fonte: “O Estado de São Paulo”, 18/2/2020