Não tem passado despercebido nos conselhos editoriais das revistas jurídicas o significativo aumento do número de artigos na área de teoria e filosofia do direito, especialmente sobre hermenêutica. Entre os temas mais recorrentes, destacam-se os relativos ao alcance da interpretação extensiva das leis, aos limites da criação judicial e à segurança do direito.
Evidentemente, isso foi impulsionado pelos julgamentos de empresários e políticos acusados de corrupção pelas diferentes instâncias do Judiciário. Independentemente da abordagem e do rigor desses artigos, o denominador comum é a distinção entre regras e princípios na ordem jurídica.
Regras têm um campo de abrangência limitado e um número definido de hipóteses em que podem ser aplicadas. Elas se expressam por meio de conceitos precisos, que propiciam uma interpretação restrita como método hermenêutico, aplicável aos casos corriqueiros, possibilitando uma jurisprudência fácil de ser formada.
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Princípios têm um campo de abrangência maior que o das regras e um número indefinido de hipóteses, pois se expressam por meio de conceitos indeterminados. Essa ambivalência permite a cada cidadão imaginar que seus anseios tenham sido acolhidos pelo legislador.
Para ser aceitável pelos cidadãos, a lei não deve ser unívoca nem certa, no sentido matemático. Do ponto de vista de uma técnica legislativa que se destaca mais por sua funcionalidade do que por seu formalismo, os princípios são usados para calibrar expectativas sociais e oferecer argumentos diversificados para o raciocínio jurídico.
A distinção entre regras e princípios ajuda a compreender o processo legislativo nas sociedades estabilizadas, com seus hábitos e rotinas, e nas sociedades cambiantes, quando os conflitos acirrados põem em risco a estabilidade das leis. Nas sociedades estáveis, a institucionalização do direito pressupõe três etapas. A primeira é o desenvolvimento de comportamentos padronizados por meio de interações regulares a partir de valores comuns. A segunda é a generalização desses valores e a estabilização de um senso comum moral. A terceira é a “sedimentação” – quando as instituições de direito se consolidam, propiciando um engate entre estruturas sociais e jurídicas. Essa estratégia de institucionalização do direito, contudo, não funciona em tempos incertos, em que as identidades coletivas se encontram erodidas e inexistem referências éticas consensuais. Nesse caso, como podem os juízes aplicar leis em meio a acontecimentos que provocam rupturas e bifurcações na ordem vigente? Como lidar com mudanças intensas, se as categorias normativas foram concebidas para tempos de estabilidade?
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Já nas fases rotineiras, os acontecimentos são suficientes para diferenciar o que é certo e errado. Nos períodos de crise, essas distinções são difíceis de fazer, pois as regras ficam sobrecarregadas pelas incertezas, o que prejudica sua aplicação. Nesse cenário, os princípios exercem papel decisivo como técnica legislativa. Graças à indeterminação de seus conceitos, ajudam a combinar permanência e mudança, a balizar a ponderação e a estabelecer critérios que redefinem o sentido da ordem jurídica. Princípios são vagos por natureza, já que sua ambiguidade é inerente à relação entre uma proposição geral e uma proposição particular.
Conhecidos juristas americanos costumavam afirmar que quase toda particularidade cabe em mais de uma generalidade, mas que as particularidades implicadas em cada generalidade nunca são esgotáveis. Também lembravam que a ambiguidade ajuda a lei a permanecer estável, ao mesmo tempo que, por meio de reinterpretações, ela se adapta às novas circunstâncias. É por isso que, exigindo ponderação como método hermenêutico, os princípios tendem a ser aplicados aos casos difíceis de sociedades que não conseguem mais ser disciplinadas por corpos de normas gerais, tais o distanciamento social e a incompatibilidade do direito codificado com situações heterogêneas. E por maior que seja a ambiguidade dos princípios, isso não significa que, ao aplicá-los, o juiz leve em conta só sua vontade. Ainda que existam juízes voluntaristas, a decisão judicial não se confunde com um padrão opinativo de julgamento, que valoriza mais o poder simbólico da jurisdição do que a necessidade que ela tem de se legitimar perante as partes e a própria sociedade.
A discussão é antiga. Na Europa e nos Estados Unidos, teóricos do direito já afastaram a tese de que os conceitos jurídicos são unívocos e de que haveria um método único para interpretá-los. Ronald Dworkin, referência para várias gerações de juristas, afirmava que a moral, a política e a justiça estão intrinsecamente conectadas e que o direito é conceito interpretativo, pressupondo práticas argumentativas das quais dependem sua complexidade e suas consequências. Mesmo assim, os textos legais sempre limitam o intérprete e sua aplicação deve ser realizada por meio de regras que permitam extrair seus fundamentos políticos e pressupostos morais.
A aplicação do direito resulta em respostas fundadas e não arbitrárias, que permitem avaliação sobre seus pressupostos éticos e doutrinários e sobre seu alcance – dizia. Bem antes de Dworkin, Miguel Reale chamava a atenção para o que os defensores de uma hermenêutica restritiva desconhecem: a importância da conexão entre análise política e cultura jurídica no labor judicial, dada a impossibilidade de reduzir a decisão jurídica a uma simples operação formal. A existência de mais de uma solução para os litígios é tão normal que não pode deixar de ser considerada quando se fala em segurança do direito. Mas se essas soluções são consistentes e seus autores têm consciência de suas implicações institucionais, o que não se tem visto no Supremo Tribunal Federal, isso é outro problema.
Fonte: “Estadão”, 05/05/2018