No seu livro “Desafio aos Deuses – A Fascinante História do Risco” (Editora Campus, 1995), Peter Bernstein relata uma história curiosa, ocorrida na Rússia nos anos 40: “Em uma noite de inverno, durante um dos inúmeros ataques aéreos alemães contra Moscou, na Segunda Guerra Mundial, um eminente professor de estatística soviético apareceu em seu abrigo antiaéreo local. Era a primeira vez que dava as caras. ‘Há 7 milhões de pessoas em Moscou’, costumava afirmar. ‘Por que devo esperar que me atinjam?’. Seus amigos ficaram espantados ao vê-lo e perguntaram o que acontecera para que mudasse de ideia. ‘Vejam bem’, explicou ele, ‘há 7 milhões de pessoas em Moscou e um elefante. Na noite passada eles atingiram o elefante'” (pág.115).
A anedota relaciona-se com a importância de recordar que eventos catastróficos podem acontecer. Foi o abandono das regras de prudência que deveriam guiar a tomada de decisões que está na raiz da crise que a economia mundial experimentou a partir do terceiro trimestre de 2008, na sequência da quebra da Lehman Brothers.
É para se precaver contra episódios improváveis que as autoridades devem zelar pela adoção de normas que minimizem as consequências de eventos extremos. A ideia de que é possível anular essas consequências é pouco realista, uma vez que um país está inserido no mundo e não há como uma economia ser uma ilha. Entretanto, é possível, sim, maximizar os cuidados no sentido de se precaver ao máximo contra os riscos.
No debate teórico-ideológico, o que aconteceu em 2008 foi apresentado por muitos como o “muro de Berlim do capitalismo”, dando a ideia de que, assim como no final dos anos 80 a debacle da antiga União Soviética marcou o enterro sem glória do comunismo, o colapso de grandes bancos nos EUA em 2008 teria marcado a morte política de uma certa visão de mundo pró-mercado. Transposta, essa interpretação se transformou na tese de que as ideias associadas à condução da economia, em voga nos anos 90, teriam sido definitivamente derrotadas. “Chegou a hora do Estado”, clamou-se aos quatro ventos nas paisagens locais.
A interpretação lembra a antiga piada referente à pergunta acerca do que há em comum entre o Superman e um argentino humilde (resposta: “Nada, pois ambas são criaturas que habitam no reino da fantasia”). Por que a associação com tal piada? Porque, no debate concreto no Brasil, os “defensores do liberalismo absoluto” não passam de criaturas inventadas pela mitologia ideológica. De fato, os críticos da ortodoxia fiscal e monetária apontam para as políticas implementadas no final dos anos 90 – especialmente a partir do ajuste fiscal de 1999 – e continuadas nos primeiros anos do Governo Lula como exemplo de “renúncia” ao papel do Estado na economia. Noves fora o detalhe de que a relação gasto público/PIB não deixa de aumentar no Brasil há 25 anos, o fato é que nem o Banco Central de FHC – com qualquer dos seus presidentes – nem o de Lula – com Meirelles- foram exemplos de liberalismo absoluto no campo regulatório. Embora Alan Greenspan, nas suas memórias, tenha feito uma profissão de fé no livre mercado, contra a adoção de um controle maior dos fluxos financeiros, pode-se dizer que, na prática, essa pregação específica nunca teve seguidores no Brasil.
Tal pano de fundo é essencial para entender por que nossa economia saiu relativamente incólume da crise de 2008/2009, sofrendo um baque – inevitável – no crescimento, mas com um sistema financeiro sólido. O que aconteceu é um exemplo do que a literatura denomina de “institutional building”, ou seja, a “construção institucional” que define um conjunto de regras que transcendem a existência do Governo A ou B. Observou-se o desenvolvimento, ao longo dos anos, de uma regulação muito bem elaborada, que contribuiu decisivamente para evitar que a crise de 2008 tivesse no Brasil as conotações dramáticas que teve em outros países. O Banco Central – não o de FHC ou de Lula, mas o do Brasil – teve um papel muito positivo nesse processo, cujas raízes remontam a muitos anos antes da eclosão da crise.
Esse processo de amadurecimento da regulamentação financeira no Brasil é o “coração” do livro que, juntamente com Márcio Garcia, tive a honra de organizar e que acaba de ser publicado pela editora Campus (“Risco e regulação”). A coletânea contou com a autoria, entre outros, de dois ex-ministros da Fazenda, dois ex-presidentes do Banco Central – e o prefácio de um terceiro – e de dois ex-diretores e um dos atuais diretores da instituição. Ao longo da leitura dos seus artigos, constata-se que há muitos anos – e, em particular, desde meados dos anos 90 – as autoridades monetárias brasileiras se engajaram em um esforço de supervisão no sentido de evitar o surgimento de excessos como os que acabaram se verificando no exterior. A conclusão à qual se chega após ler os artigos dessa coletânea é que o arcabouço regulatório constituído ao longo dos anos no país parece ter sido relativamente adequado para lidar com as crises e, certamente, revelou-se mais apropriado do que os sistemas legais existentes em vários dos países mais avançados – e que falharam miseravelmente em 2008. Pode-se afirmar, sem medo de errar, que se o Federal Reserve (o Fed, banco central americano) e outros bancos centrais no mundo tivessem tido o zelo que teve o nosso BC – tanto no período FHC como no governo Lula – a crise no exterior não teria alcançado proporções tão grandes. Embora não se deva cair no ufanismo e caiba reconhecer que nosso sistema financeiro tem ainda problemas importantes a equacionar – como o alto nível dos compulsórios, que não deixa de representar uma anomalia – o fato é que, no caso específico da regulação, a nossa revelou-se melhor que a do resto do mundo. Estando à vontade para elogiar os artigos do livro – uma vez que não me encontro entre os autores – recomendo a leitura da obra para entender por que a afirmação de que o Brasil sai da crise melhor do que entrou é, de fato, pertinente. Boa leitura!
Fonte: Jornal “Valor Econômico” – 08/03/2010
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