Por Bruno Meyerhof Salama e Vicente Piccoli M. Braga*
A crise de 2007-08 restaurou muito da crença na regulação como mecanismo para administração de riscos manutenção da estabilidade nos mercados financeiros. Hoje mais do que nunca, e talvez no Brasil mais que em toda parte, fala-se das virtudes da chamada regulação prudencial – que como o próprio nome diz, está voltada à moderação e a promoção do equilíbrio nos mercados. Mas o diabo mora nos detalhes. Elogiar-se as virtudes da regulação, falar-se dos vícios do livre-mercado, defender propósitos generosos… Nada disso resolve problemas concretos até que se desça às minúcias dos critérios que concretamente poderão servir para esclarecer tanto ao regulador quanto ao regulado o que está de fato proibido e o que está de fato permitido. É nesse ponto que o pensar jurídico encontra a técnica da regulação bancária.
O ponto é bem ilustrado por diversos temas, e aqui tratamos de um deles, a saber, a vedação à concessão de financiamentos por corretoras para seus clientes. A questão é importante porque as corretoras possuem um papel de destaque na sistemática de garantia de solvência do sistema financeiro. Elas são “contrapartes” nas operações de valores mobiliários realizadas por seus clientes, ou seja, obrigam-se em nome próprio perante a bolsa (ou outro) por conta dessas operações. Isso significa que o risco de crédito que os terceiros correm é o risco das corretoras, não o dos clientes dessas. Assim, a solvência das corretoras é de importância crucial para a manutenção da confiança no sistema financeiro, vez que é relevante frente a questões como a proteção da poupança popular, mitigação de risco sistêmico e reforço da estabilidade.
A fim de preservar a solvência das corretoras, a Comissão de Valores Mobiliários e o Conselho Monetário Nacional vedam (com algumas poucas exceções) às corretoras concederem financiamentos a seus clientes. Mas na prática o tema é confuso porque às vezes acontece de as corretoras ficarem com saldos abertos perante seus clientes ao fim de determinada “janela”, sem que tenham propriamente desejado conceder um financiamento. A origem desse problema pode ser diversa: vai desde eventuais dificuldades operacionais (como agências bancárias em greve, erro humano, protestos, assaltos) até os descasamentos de maturidades e liquidações, riscos próprios dos negócios com valores mobiliários. De qualquer forma, as corretoras honram as obrigações porque elas são “contrapartes”, como já mencionado.
Ora, nesses casos, do ponto de vista econômico, pode-se dizer que haja um financiamento da corretora aos seus clientes. Isso porque, a corretora terá que despender os recursos da operação do seu cliente perante a outra parte mesmo sem ter recebido os recursos correspondentes. Mas será que deve haver punição?
A resposta é: depende. A mesma estrutura que garante certo grau de proteção ao mercado contra riscos sistêmicos, também deixa a corretora exposta ao risco de ter contas de clientes fechando janelas de negociação com saldo negativo. E isso, pode decorrer tanto de uma atuação deliberada ou descuidada da corretora, como de uma fatalidade que é própria da sua atividade. Juridicamente, diz-se então que somente deve haver punição se a concessão do financiamento tiver sido culposa ou dolosa.
Dizer isso, contudo, é dizer pouco. Como saber se a conduta da corretora é culposa ou dolosa? É certo que a existência de saldo em aberto constitui indício da culpabilidade da corretora, mas esse dado, por si só, não é conclusivo. É necessário entender que em razão da robustez desse indício, quando se identifica a existência do saldo devedor, a corretora precisa demonstrar que a situação tenha surgido por conta de fatos que não lhe podem ser atribuídos dolosa ou culposamente.
Nesse caso, são relevantes as seguintes circunstâncias, que devem servir como critérios de aferição de culpabilidade: (i) o prazo durante o qual o saldo ficou em aberto; (ii) o valor desse saldo; (iii) a recorrência ou excepcionalidade da situação; (iv) as providências eventualmente adotadas pela corretora para sanar o problema, que podem incluir, entre outras, a não entrega dessas ao cliente até o pagamento, a comprovação das comunicações com o cliente buscando sanar o problema, a remessa do problema aos graus hierárquicos superiores da corretora e até a informação da inadimplência à bolsa. Também militaria a favor da corretora a existência de um rígido sistema interno de compliance, que pode englobar, entre outras políticas, a existência de mecanismos de monitoramento da maturidade dos ativos do cliente e adoção de medidas buscando adequar clientes com histórico de saldo em aberto à exceção do disposto nas regras da CVM.
Há quem acredite que o pensar jurídico seja um conjunto de ideias abstratas, herméticas e inúteis, mas não deve nem precisa ser assim. A atividade de quem se põe a pensar sobre direito, mesmo que seja teórica, tem que estar voltada ao concreto. A descrição das circunstâncias que compõem o limiar adequado para caracterizar a culpabilidade de uma corretora é bom exemplo de como o pensar jurídico é parte inescapável de um quadro regulatório que possa efetivamente funcionar. Quem fala de regulação sem ter em mente a operabilidade jurídica das condicionantes previstas em lei já não regula, somente solta fumaça.
*Vicente Piccoli M. Braga é advogado, mestre em Direito pela FGV Direito SP
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