Direitos humanos, só em tempos de paz. Qualquer ameaça de instabilidade – real ou não – tem levado governos de diversos países a suspender liberdades individuais e, com frequência, recorrer à força em excesso. As denúncias constam do Relatório Mundial de Direitos Humanos 2015 da Human Rights Watch (HRW), uma das organizações não governamentais globais mais respeitadas na área, que será divulgado nesta quinta-feira.
O documento compilou repetidos exemplos de governos que têm respondido a turbulências sociais com repressão, torturas e outros abusos, entre eles os da Rússia, do Egito e dos Estados Unidos, além de grupos jihadistas como o Estado Islâmico e o Boko Haram. Com informações sobre avanços e retrocessos em mais de 90 nações, o documento trata também da situação do Brasil, destacando práticas policiais abusivas e condições desumanas em prisões.
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“Essa relativização dos direitos humanos não é apenas equivocada, mas também insensata e danosa. As violações dos direitos humanos tiveram um papel importante em gerar ou agravar a maioria das crises atuais. O segredo para resolver essas crises está em proteger os direitos humanos e permitir que a população expresse sua opinião sobre a forma como seus governos devem lidar com elas. Especialmente em períodos conturbados e de escolhas difíceis, os direitos humanos são uma bússola essencial para a tomada de ação política”, descreve o capítulo introdutório do documento assinado pelo diretor-executivo Kenneth Roth, sob o título “O falso conforto da tirania: por que a proteção de direitos não é equivocada em tempos difíceis”.
‘Democracia em amadurecimento’
Ao tratar do Brasil, a organização destaca desafios relacionados aos direitos humanos no plano interno, citando execuções extrajudiciais cometidas por policiais, superlotações das prisões e uso de tortura e maus-tratos. Diretora da Human Rights Watch no Brasil, Maria Laura Canineu afirma que, mesmo sendo um regime democrático, o país ainda passa por um processo de aperfeiçoamento de suas instituições.
– O Brasil é uma democracia que está em processo de amadurecimento. Ainda não conseguimos superar alguns problemas estruturais. Apesar de já termos avançado, há heranças de um país que alcançou a democracia sem antes ter resolvido abusos do passado – avalia, fazendo referência à ausência de punição aos autores de crimes ocorridos durante a ditadura militar e elogiando o trabalho da Comissão da Verdade.
De acordo com o relatório, ainda que governos dos estados de São Paulo e Rio de Janeiro venham criando medidas para diminuir abusos policiais, falsos registros de mortos em supostos confrontos ocultam execuções sumárias. A ONG lembra que a polícia foi responsável por 436 mortes, no Rio, e 505, em São Paulo, somente nos primeiros noves meses do ano passado. No caso paulista, o número representa alta de 93% sobre o mesmo período de 2013. O uso excessivo da força que deixou feridos manifestantes e jornalistas durante protestos é mencionado.
A HRW chama atenção também para a tortura praticada em delegacias e centros de detenção. Foram 5.431 registros desses abusos na Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos, entre janeiro de 2012 e junho de 2014. Oito em cada dez denúncias se referiam a práticas cometidas em unidades prisionais. Outro aspecto destacado é a superlotação no sistema carcerário, cuja população adulta passa de 500 mil pessoas, ou 37% mais que a capacidade total. Do total, 230 mil são presos provisórios.
Maria Laura explica que um projeto de lei em tramitação no Congresso Nacional pode solucionar ambos os problemas. O PLS 554/2011 propõe a exigência de que presos em flagrante passem por uma audiência de custódia até 24 horas depois da detenção.
– Além de combater a tortura, é um mecanismo que pode ajudar juízes a aplicarem medidas cautelares que não a prisão. Depois da crise (de sucessivas rebeliões e mortes no presídio de Pedrinhas) no Maranhão, uma das decisões tomadas foi fazer audiências de custódia nas varas de execuções penais. Essa articulação já tem alguns resultados – exemplifica.
Outro pleito da organização é a aprovação de projeto de lei que dificulta o disfarce de execuções extrajudiciais pela polícia sob o rótulo de autos de resistência. O PL 4471/2012 é citado também pela coordenadora da ONG Justiça Global, Sandra Carvalho.
– O Brasil tem de abolir essa forma de registro, o que inclusive já foi recomentado pelo antigo Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana (atual Conselho Nacional dos Direitos Humanos, da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência). Outra questão a ser enfrentada é a desmilitarização das policiais. É necessária ainda a independência dos órgãos de controle, como ouvidorias e corregedorias – opina, acrescentando que a repressão às manifestações de 2013 e 2014 com bombas de gás e balas de borracha é um exemplo de supressão dos direitos humanos em meio a turbulências.
Reformas sistemáticas da polícia
Diretor de pesquisa do Instituto Igarapé e especialista em segurança e desenvolvimento, Robert Muggah diz que as instituições policiais brasileiras precisam de uma reforma sistemática:
– As estruturas de policiamento brasileiras são altamente militarizadas. Parte do problema é histórica. A divisão de responsabilidades entre policiais militares e civis gera confusão e contradição. O desafio também é cultural: os agentes são treinados para tratar os cidadãos não tanto como público a ser servido, mas como uma fonte potencial de ameaça. Outra dificuldade é institucional. Há um alto grau de impunidade dos policiais que cometem a violência em serviço ou fora dele.
O Relatório Mundial de Direitos Humanos indica outras violações no Brasil, como o risco consequente à realização de abortos em clínicas clandestinas, a discriminação e os crimes contra LGBTs e a violência em conflitos de terras envolvendo ativistas do campo e líderes indígenas. No plano internacional, o documento elogia a trajetória de votação do Brasil no Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas, citando uma votação em favor de resolução que condenava operações militares israelenses em Gaza e a proposição de um acordo para o combate à violência e à discriminação baseada na orientação sexual e identidade de gênero.
Fonte: O Globo.
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