O forte crescimento dos deficits previdenciários acabou expulsando os investimentos nos orçamentos da União, Estados e Municípios, itens esses que, somados, e após atingirem o pico de 4,7% do PIB nos anos 60, desabaram para 1,2% do PIB em 2017, chegando, assim, a apenas um quarto daquele valor em termos reais.
O recente esgotamento da margem de manobra orçamentária se deveu, ainda, à forte elevação do gasto com os itens que costumo denominar “donos do orçamento”, verbas essas praticamente fora do controle dos titulares dos respectivos Poderes Executivos. Trata-se dos gastos setoriais nas áreas de educação e saúde, além dos relativos aos chamados Poderes Autônomos (Legislativo, Judiciário, Ministério Público, Tribunal de Contas e Defensoria Pública). A esses se somaria ainda o serviço da dívida subnacional, hoje basicamente com a União, que tem como impor esse pagamento, mas não se faria o mesmo com os gastos relativos aos aposentados em todas as esferas, que, por mais que sejam obrigatórios, os “donos” resistem a bancar. A Previdência fica, então, de fora da parcela prioritária, e é repassada aos titulares dos Executivos para fins de equacionamento, com os gastos das demais secretarias desprotegidas por “vinculações de receitas” ou outras amarrações, neles se destacando o item investimento.
O encolhimento brutal dos itens não prioritários ou residuais tornou a “Pec do Teto” herdada de Temer rapidamente inviável, a não ser que o Congresso aceitasse tirar educação e saúde do time dos “donos do poder”, algo talvez impensável, pelo menos por enquanto.
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Para estados e municípios, essa situação se agravou consideravelmente após a explosão da recessão feroz, que fez com que disparassem os “deficits orçamentários”, calculados com base nas despesas “empenhadas” ou autorizadas. Esses entes não podem mais emitir moeda de forma indireta, e há poucas possibilidades de se financiarem (a não ser via esquemas especiais como o Programa de Recuperação Fiscal, acessível a muito poucos). Assim, os estados estão encerrando os últimos mandatos com elevados volumes de atrasados sem numerário equivalente nos caixas respectivos, o que se choca com a lei. E o abacaxi ficou para os novos dirigentes descascarem, assunto para outra coluna. (Poucos sabem, mas a União contorna esse problema emitindo moeda).
Reafirme-se que a tão decantada reforma de regras da previdência é parte fundamental da solução do problema estrutural por trás do que se disse acima. A experiência tem mostrado, contudo, que, por mais forte que seja o governo, são muito baixas as chances de se aprovar uma tal reforma sem mais nem menos, pois é muito grande a resistência da sociedade ao que se costuma considerar como perda limpa e seca de direitos adquiridos, e é visto como recaindo principalmente sobre os segmentos menos privilegiados da população afetada. Deve-se lembrar, ainda, que uma típica reforma de regras da previdência pode ter grandes impactos no longo prazo, mas dificilmente os terá no curto.
Nesses termos, uma chance maior de aprovação certamente teria lugar, se a mudança de regras fosse combinada com a reorganização da previdência em fundos de pensão, para onde se destinariam, de forma obrigatória, ativos e outros recebíveis indispensáveis ao seu equacionamento financeiro, muitos deles totalmente inertes no momento atual, permitindo ao mesmo tempo a abertura imediata de um expressivo espaço fiscal nos orçamentos. O uso desse espaço, que é crucial no momento em que vivemos e seria impensável sob outros roteiros, deveria ser amarrado a investimento em infraestrutura, onde há enormes carências, para evitar novo surto de aumento de pessoal.
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Aqui, o procedimento padrão é fazer uma “segregação de massas”, ou transferência dos atuais aposentados pagos pelos orçamentos, a começar pelos mais idosos, para os novos fundos (ou fundos embrionários já existentes), mediante o aporte de ativos que lhes confeririam sustentação atuarial. As despesas dos aposentados transferidos para os fundos seriam cobertas com recursos líquidos tornados disponíveis nesse processo, via inclusive securitização (ou antecipação) de ingressos futuros.
Para aprovar esse projeto, se juntariam de forma natural todas as partes interessadas: os Executivos Estaduais e Municipais, além do Federal, que precisam sair do buraco, e representantes de servidores, que desejam ardentemente a sustentabilidade dos seus regimes, ainda que tenham de pagar maiores contribuições e aceitar perdas de direitos que antes sequer cogitariam. Hoje em dia, há plena convicção de que esses regimes estão literalmente quebrados. Por isso, cria-se a oportunidade para a negociação política.
Nesse sentido, foi surpreendente a mudança de atitude da administração que sucedeu João Doria na Prefeitura de São Paulo, que, em vez de se integrar ao esforço nacional correto, jogou no lixo a proposta de reorganização feita antes do jeito certo, e apenas aumentou a contribuição dos servidores.
Fonte: “Correio Braziliense”, 08/01/2019