Quando se adota a linha de pobreza sugerida pela ONU, há relativamente poucos pobres no Brasil: apenas 3,8% da população tem renda per capita inferior a US$1,25 por dia. Por que então é tão baixo o Índice de Desenvolvimento Humano brasileiro, a ponto de nos colocar na 84ª. posição entre os países considerados pela ONU?
Trata-se em primeiro lugar da péssima distribuição de renda do País. Temos relativamente poucos pobres, mas os mais ricos se apropriam de uma parcela desproporcional da renda nacional. Em segundo lugar estão as deficiências das políticas de educação, saúde e segurança, incapazes de melhorar a qualidade de vida da população, apesar de o gasto do país nesses setores estar dentro dos padrões internacionais.
Parece evidente a necessidade de repensar as políticas sociais. Elas precisam ir além da miséria, para também cuidar das necessidades básicas da grande massa da população brasileira. Pois, segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad), a renda familiar per capita dos 80% mais pobres da população brasileira é inferior a R$ 1.000 por mês. São pessoas com frequência dependentes do INSS, do Sistema Único de Saúde (SUS) e do ensino público básico, morando em locais onde é maior a criminalidade no país.
Para focar as políticas sociais nesses 80%, é preciso lidar com alguns problemas políticos e legais complicados. Boa parte dos chamados gastos sociais beneficia não os 80% mais pobres, mas os 20% mais ricos. É assim com a previdência do servidor público, a gratuidade das universidades públicas, os gastos do SUS com remédios caros e procedimentos de média e alta complexidade, frequentemente obtidos através de ações judiciais. É assim também com os “bicos” que os policiais fazem para dar segurança aos mais ricos, nas suas 48 horas de descanso remunerado. Para ter dinheiro para praticar política social de qualidade para os 80% mais pobres, é preciso limitar os privilégios dos 20% mais ricos, o que significa confrontar as corporações que representam seus interesses.
Os problemas legais para focalizar os gastos sociais nos 80% mais pobres derivam de uma peculiar, mas disseminada, interpretação dos princípios constitucionais da universalidade e da igualdade. Na interpretação corrente, as desigualdades dos benefícios sociais não devem ser corrigidas com o redirecionamento dos gastos públicos dos 20% mais ricos para os 80% mais pobres, mas sim pela expansão dos gastos e a extensão para os demais dos direitos e benefícios conquistados por esses 20%, que são considerados direitos adquiridos. É claro, entretanto, que não há dinheiro suficiente para essa expansão. A única maneira de implantar os princípios da universalidade e da igualdade na prestação dos serviços públicos é partindo de baixo para cima e não de cima para baixo. A equidade se impõe como o princípio norteador básico das políticas sociais numa sociedade tão desigual como a brasileira.
Vejamos o que isso significa no caso da saúde. Trata-se em primeiro lugar de privilegiar a expansão do programa de saúde da família, cuja cobertura se estagnou em torno de 60%, deixando ao desabrigo uma parcela importante da população que não tem planos de saúde. Significa também definir de maneira razoável o que se entende por ‘integralidade’ da saúde, de forma a que o judiciário possa respeitar as listas de prioridades do SUS e da Anvisa. Significa ainda estabelecer de maneira precisa os limites entre o atendimento via planos de saúde e via SUS. Quem não tem plano de saúde deve ter prioridade de acesso à rede pública. Ademais, os custos da rede pública com o atendimento de quem tem plano de saúde devem ser ressarcidos pelas operadoras dos planos. Finalmente, como queremos atendimento de qualidade, seria de bom alvitre adotar em todo o País a bem-sucedida experiência de São Paulo com a contratação de organizações sociais para o gerenciamento dos hospitais públicos.
Fonte: O Estado de S. Paulo, 17/11/2011
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