No debate sobre as relações entre Executivo e Legislativo brasileiros, o nosso federalismo assimétrico, com clara predominância da União sobre os estados, surge como um fator de desequilíbrio reconhecido por políticos e cientistas políticos.
A “enorme centralização de poder fiscal – tributação e gasto – na União”, sob controle praticamente monopolista do Executivo, foi destacada pelo cientista político Sérgio Abranches, que defende reduzir o peso da União e descentralizar poderes fiscais e regulatórios para os estados.
O ex-deputado Marcelo Cerqueira, advogado que assume o cargo de assessor no Tribunal Superior Eleitoral (TSE) na gestão da ministra Cármen Lúcia, acha que o erro da Constituinte congressual foi “pensar em um semipresidencialismo e votar um presidencialismo imperial, especialmente com as medidas provisórias”.
Para ele, a questão do Orçamento imperativo também é problemática e desafia um terceiro gênero que possa compatibilizar os interesses da União com os dos estados e seus representes parlamentares:
“Se os repasses da União não são satisfatórios, se a via torta das contribuições se sobrepõe aos impostos, se a guerra fiscal entre os estados continua e vai se aprofundar com a crise, remediar pela lei meramente “autorizativa” complica mais ainda o quadro”, analisa.
O historiador José Murilo de Carvalho, professor emérito da UFRJ e membro da Academia Brasileira de Letras, já havia mencionado a redução da dependência dos estados em relação ao Poder Central como uma das medidas para equilibrar a relação entre Executivo e Legislativo, e retoma o assunto mostrando que historicamente existe uma relação entre o peso das unidades federativas, o sistema partidário e eleitoral e o embate entre os dois poderes.
O marquês de Paraná introduziu em 1855 o voto distrital para reduzir o peso das bancadas provinciais, que embaraçava a aprovação de medidas do governo na Câmara. Queria acabar com os “deputados de enxurrada”. O voto distrital fragmentou essas bancadas.
Na Primeira República, o peso das bancadas estaduais foi determinante, não se fragmentando o sistema graças à política dos estados (o sistema eleitoral era de distritos de três deputados). A coalizão governista era montada com os estados e não com os partidos.
Hoje, ele diz que nosso federalismo fiscal favorece enormemente o governo central: “Os estados têm enormes dívidas com o governo federal e vivem em boa parte de transferências de recursos, e isso é ainda mais verdade para os municípios, que, na maioria, dependem de transferências dos estados e da Federação, e de investimentos do governo central.”
Tudo isso, adverte José Murilo de Carvalho, dá ao Executivo enorme poder, que talvez nenhuma mudança no sistema eleitoral e partidário possa reduzir.
Para ele, o voto proporcional favorece a unidade das bancadas porque, na realidade, nosso voto não é proporcional, é distrital, cada estado sendo um distrito.
Em consequência, o que importa mais, os interesses dos deputados, dos partidos ou dos estados?, indaga, para lembrar que, “no caso dos royalties, se viu que os partidos somem diante dos interesses de alguns estados”.
José Murilo teme que nosso federalismo seja “um obstáculo intransponível” a tentativas de equilibrar as relações entre Executivo e Legislativo, para que este tenha de fato força representativa “que vá além do mero esforço de extrair recursos do Pai Grande, para indivíduos, municípios e estados”.
O ex-senador Marco Maciel, também membro da Academia Brasileira de Letras e um dos maiores especialistas em Federação, já presidiu a Comissão de Constituição e Justiça do Senado e há muito se preocupa com que chama “de sístole no processo federativo brasileiro, com uma cada vez maior concentração de poderes na União”.
Ele ressalta que os fundamentos teóricos dos federalismos do Brasil e dos Estados Unidos são os mesmos, “ambos se baseiam na igualdade de todos os estados no Senado, o que faz supor a igualdade política entre eles”.
A origem de tudo é a Constituição americana de 1787. Maciel ressalta que ela “praticamente vertebrou todo um processo republicano, presidencialista, bicameral e federalista”. Ele lembra que, na sua posse, o ex-presidente Ronald Reagan disse a seguinte frase: “Foram os estados que fizeram a União, e não a União que fez os estados. De muitos, um.”
Por isso, também, o presidente do Senado nos Estados Unidos é o vice-presidente da República, que é eleito nacionalmente e só vota em caso de desempate. “Nenhum estado ficaria beneficiado” – sistema que também já foi usado no Brasil.
Na análise de Maciel, o Brasil ainda sofre de grande centralismo em torno da União e elevado grau de competitividade entre os estados, Distrito Federal e municípios, padecendo de “debilidade congênita”.
Os “conflitos distributivos” são cada vez mais explícitos, a começar pela partilha dos royalties do petróleo no pré-sal.
Também os critérios de rateio das transferências federais estão sendo contestados até mesmo pelo Supremo Tribunal Federal, que deu um prazo até o fim deste ano para que a distribuição do Fundo de Participação dos Estados seja refeita, por considerá-la inconstitucional, baseada em critérios defasados e acordos políticos que prejudicam alguns estados em benefício de outros.
Também os estados estão contestando o indexador das dívidas com a União, que hoje é o Índice Geral de Preços-Disponibilidade Interna (IGP-DI), muito acima dos demais indexadores da economia, o que torna as dívidas impagáveis.
Mesmo assim, o Executivo quer substituí-lo pela taxa de juros básica, a Selic, o que não agrada aos estados, já que é a União que define a taxa.
Todas essas divergências erodem o Estado federal e, para o ex-senador Marco Maciel, é preciso promover a descentralização, mecanismo essencial para assegurar a plena cidadania.
Fonte: O Globo, 18/04/2012
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