O escritor italiano Giuseppe di Lampedusa, no romance “Il Gattopardo” (“O leopardo”, em português), de 1958, comentou sobre a elite encastelada que dominava a Sicília e fazia de tudo para se manter no poder e evitar que o caos das ruas a afetasse. No trecho que se tornou clássico, um dos personagens, Don Fabrizio Corbera, o Príncipe de Salina, disse: “A não ser que nós tomemos medidas agora, eles irão nos forçar uma república. Se quisermos que as coisas continuem como estão, as coisas precisam mudar”.
Nada tão atual. A tramoia do momento urdida em Brasília para acabar com a prisão após a condenação em segunda instância é macabra. Descobriram que o Acórdão de outubro de 2016, justamente o que permitiu a prisão após a condenação em segundo grau, confirmado por seis votos a cinco pelo plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) em dezembro daquele ano, nunca tinha sido publicado. Assim, pasmem, a publicação só ocorreu agora, no último dia 7, com prazo de cinco dias úteis para a apresentação de recursos. Na última quarta-feira (14), o Instituto Ibero Americano de Direito Público entrou com embargos de declaração em relação à decisão de um ano e meio atrás, para a alegria dos políticos e autoridades que estão na fila da cadeia. Com a revisão em aberto, surge a brecha para o plenário da Corte deliberar que a pena só começará a ser cumprida após condenação no Superior Tribunal de Justiça (STJ). Decisão nesse sentido fará ressurgir o “trem da impunidade” e significará a desmoralização das instâncias inferiores da Justiça. Na vitória do compadrio dos poderosos, às favas 90% dos brasileiros que clamam por medidas mais duras no combate à corrupção.
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A indignação e a decepção com o que está acontecendo no país atingem níveis extremamente graves. Conforme pesquisa divulgada pela Fundação Getulio Vargas no segundo semestre do ano passado, sete em cada dez entrevistados afirmaram que, se fosse possível, sairiam do Brasil. A corrupção é o principal motivo de angústia dos brasileiros, independentemente da idade, nível de escolaridade, renda e região. Na enquete, 85,8% concordaram, total ou parcialmente, que a Justiça trata os mais ricos de forma diferente dos mais pobres. O STF em muito contribui para essa frustração coletiva. Em quatro anos, a Lava-Jato, em sentenças da Justiça de primeiro grau, realizou 183 condenações, enquanto a Suprema Corte não condenou ninguém. No fim de 2017, pelo menos 172 parlamentares estavam sendo investigados ou eram réus no STF, processos que tramitam a passos de cágado. Sem o foro privilegiado, Lula está condenado, e Eduardo Alves e Eduardo Cunha presos, submetidos, hoje, à primeira instância. E ministros do STF ainda cogitam de prolongar a liberdade dos corruptos….
O pior é que nada deverá mudar com as próximas eleições. A Câmara dos Deputados, por incrível que possa parecer, terá um dos maiores índices de reeleição das últimas décadas, segundo o Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar (Diap). O índice de reeleição poderá chegar a 70%, por vários motivos. Como de cada três parlamentares um está sob suspeita no STF, o melhor caminho para a impunidade é renovar o mandato, manter o foro privilegiado e confiar que o corporativismo das Casas Legislativas prolongará a liberdade. Além disso, a redução do tempo de campanha, de 90 para 45 dias, e do tempo de propaganda eleitoral na televisão, de 45 para 35 minutos, favorecerá os mais conhecidos e com mandato. Ademais, para compensar o fim das doações empresariais foi criado o Fundo Eleitoral, que irá somar-se ao Fundo Partidário, totalizando cerca de R$ 2,5 bilhões que serão distribuídos, neste ano e em sua maior parte, para os grandes partidos.
Além da legislação eleitoral, os deputados e senadores têm ao seu favor, por quatro e oito anos respectivamente, verbas para alugar escritórios e veículos, combustível, telefone, divulgação do mandato parlamentar, monitoramento das redes sociais etc. Se não bastasse, os deputados podem ter até 25 servidores. No Senado o campeão na quantidade de subordinados é o senador João Alberto (MDB/MA), com 84 pessoas ao seu redor. Nesse jogo eleitoral desigual, a renovação é praticamente impossível e, quando acontece, não raro são eleitos filhos e cônjuges dos velhos caciques.
Na “República de Lampedusa”, tal como desejava Don Fabrizio, as mudanças são apenas para tudo continuar como está. Os que legislam se eternizam e indicam os que julgam. Estou a cada dia mais convencido de que tudo tem que mudar, para nada continuar como está.
Fonte: “O Globo”, 20/03/2018