Sob a Constituição de 1988, o país: 1) colocou em prática um novo modelo de apoio a segmentos menos privilegiados da sociedade (não necessariamente os menos…) via transferências direta de renda; 2) reforçou velhas prioridades, como saúde e educação, sem mostrar muito serviço; 3) encheu de gás a bola de outros segmentos em que a prioridade setorial se mistura hoje com os interesses das corporações de servidores públicos que nelas atuam. A soma disso tudo levou à concentração dos gastos dos orçamentos públicos em determinados itens e à virtual eliminação de outros.
Variando um pouco por esfera, esses são hoje os verdadeiros “donos do orçamento”, ou do poder. E por mais necessário para tirar o país do buraco financeiro, mexer com isso é, portanto, uma tarefa nada trivial. Com espaço limitado, destacarei apenas dois itens cuja evolução é preciso mostrar e discutir, e depois propor algo novo para os atuais impasses em que nos encontramos. Refiro-me aos investimentos públicos, basicamente em infraestrutura de transportes, e à previdência dos servidores públicos.
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Reorganizar para salvar
Antes, porém, é preciso salientar que a situação fiscal global do país é mais caótica do que jamais havia sido no passado. E olhem que venho concentrando minha atuação profissional nesse tema há bastante tempo, primeiro atuando diretamente na esfera federal, depois como consultor privado. Por último, tenho olhado com mais atenção o problema das esferas subnacionais, especialmente dos estados, onde os problemas se agravaram de forma talvez mais acentuada, e a que os colegas têm dedicado menos atenção.
Depois, sinceramente, não vi ainda nenhuma proposta de solução capaz de atacar produtivamente o problema mais amplo, a não ser a proposição de reformas genéricas e requentadas. Falo particularmente dos discursos dos candidatos.
Os dados básicos são relativamente simples, embora pouco conhecidos. Primeiro, já não tenho mais voz de tanto chamar a atenção para a importância dos investimentos em infraestrutura, especialmente de transportes. Sem eles a produtividade não aumenta mais e, literalmente, nenhuma economia anda, especialmente uma com o nosso território e com a alta prioridade dos setores intensivos em recursos naturais, como a nossa, as chamadas commodities, que geram as divisas de que tanto dependemos.
Por mais que os investimentos privados sejam fundamentais, não há como avançar nessa área sem um mínimo de investimento público. A partir de certo ponto, os dois são absolutamente complementares. Pois bem: havia um volume expressivo de recursos públicos vinculados a essa área e, em 1988, extinguimos as fontes cativas da infraestrutura — os “impostos únicos”—, repassando aos estados a respectiva base de incidência para ser tributada via o que é hoje o ICMS. Resultado: os recursos redirecionados viraram gastos de pessoal, inclusive previdência pública.
+ Marcos Cintra: Impostos tradicionais não servem mais
Pasmem, mas hoje o deficit corrente da previdência pública tem o mesmo valor na União e no conjunto dos estados: R$ 86 bilhões por ano, totalizando R$ 172 bilhões. Enquanto isso, o do INSS, se fosse ajustado para uma trajetória sem a recessão brava que ainda está aí, seria da ordem de R$ 74 bilhões. É inexplicável que todo mundo insista em reformas de regras (que levam muito tempo para entrar em vigor) e no INSS, onde o peso é menor e se situam as pessoas de menor renda. As chances de aprovação congressual são mínimas.
Enquanto isso, os investimentos públicos totais, que haviam crescido de 3% do PIB no fim dos anos 40, para 11% do PIB em meados dos anos 70, desabaram até 1,8% do PIB em 2017. Ou seja, uma troca pura de gastos de investimento por gastos correntes de camadas privilegiadas.
Insisto na tese de que o regime previdenciário público está virtualmente falido. Com mais espaço, números adicionais demonstrariam isso com maior clareza. É preciso que nos convençamos disso e que formemos uma aliança pró-retomada do crescimento que inclua representantes dos dois segmentos de forma tal a, simultaneamente, equacionar a previdência pública, reconhecendo o peso político dos verdadeiros donos do poder, e retomar o que é especialmente caro à massa de desvalidos que habitam nosso país.
A saída básica é difícil de implementar, mas relativamente simples de conceber. Basta copiar o que foi feito com a criação da Previ, do Banco do Brasil, sem eventuais mazelas ali presentes, aportando ativos e zerando o passivo atuarial com base nos novos artigos 40 e 249 da Constituição (vejam meus artigos em inae.org.br), e ajustar as regras com calma sem a postura açodada que tem caracterizado os esforços de reforma.
Para completar, é preciso encontrar o caminho de volta dos recursos economizados com o equacionamento da previdência pública, para a área de infraestrutura. Cabe revinculá-los a essa área fundamental, retirando o gasto novo do cálculo do saldo primário, a exemplo do que se fez há algum tempo via o PPI — Programa Prioritário de Investimento, com beneplácito do FMI. E ponto final.
Fonte: “Correio Braziliense”, 07/08/2018