“Ouvi disparos repetidamente enquanto as pessoas entoavam Allahu Akbar (Deus é grande) na região de Niavaran”, testemunhou um habitante de Teerã no sábado, enquanto helicópteros da polícia sobrevoavam a capital, milicianos alvejavam manifestantes e jornalistas enganavam a censura transmitindo fotos via Twitter. No Irã, insiste o candidato oposicionista Hossein Mousavi, ocorreu uma fraude eleitoral de proporções quase inconcebíveis.
Uma fraude “normal” não poderia inverter a direção de 15% dos votos. Mousavi acusa o regime de promover uma “mágica”: no lugar da totalização dos votos, a comissão central eleitoral simplesmente teria lançado resultados finais arbitrários. A hipótese é sustentada por diversos indícios inconclusivos. Entretanto, a revolta popular adquiriu dinâmica própria, escapando ao controle das lideranças políticas e ameaçando a ordem autoritária dos clérigos.
O Irã almejou ser Ocidente durante os 55 anos da dinastia Pahlevi. Desde o complô, tramado nos EUA, que derrubou o primeiro-ministro nacionalista Mohammed Mossadegh, em 1953, o xá Reza Pahlevi alinhou-se com Washington e consolidou um regime autocrático apoiado no serviço secreto. A Revolução Iraniana de 1979 não foi unicamente, como assevera a lenda, um movimento de reação contra o cosmopolitismo moderno. O levante popular que destruiu a monarquia teve um componente desse tipo, personificado pela liderança carismática do aiatolá Ruhollah Khomeini. Mas teve outro componente, nacionalista e democrático, que reivindicava a restauração da Constituição de 1906, expressão do projeto histórico de conciliação entre o Islã e as liberdades políticas numa Pérsia em busca do seu lugar na modernidade.
O equilíbrio entre os dois componentes durou pouco mais de um ano, até a deposição parlamentar de Bani Sadr, o primeiro presidente da República Islâmica. As instituições políticas iranianas, contudo, continuam a refletir, de modo enviesado, a aliança revolucionária original. O poder de Estado, derivado da vontade divina, concentra-se no líder supremo, posição ocupada pelo aiatolá Ali Khamenei, que é assessorado pelo Conselho de Guardiães. O líder supremo é escolhido pela Assembleia de Especialistas, constituída por juristas islâmicos eleitos a partir de uma lista elaborada pelo Conselho de Guardiães. O poder de governo, derivado da vontade popular, concentra-se no presidente e no Parlamento, mas a soberania do povo é limitada pela prerrogativa do Conselho de Guardiães de vetar candidaturas. República Islâmica: entre os dois termos conflitivos que nomeiam o Irã, o segundo subordina o primeiro.
Num artigo de 1988, o orientalista Bernard Lewis sugeriu que, no lugar da clássica rivalidade entre radicais e moderados, o Irã conheceria um embate entre ideólogos e pragmáticos. Após uma etapa inicial de turbulência, sob o predomínio dos primeiros, a revolução islâmica se aquietaria debaixo da hegemonia dos segundos. Não é pequena a tentação de interpretar desse modo a trajetória oscilante de um país que, depois dos anos loucos de Khomeini, acomodou-se no governo burocrático de Akbar Rafsanjani, tateou o caminho das reformas na presidência de Mohammad Khatami, desviou-se para o “choque de civilizações” de Mahmoud Ahmadinejad e agora volta suas esperanças para o pragmático Mousavi.
Mas Lewis estava errado, pois não quis ver que o Islã não é uma árvore isolada numa clareira da História, mas uma garrafa aberta no oceano do mundo. Desde a Revolução Constitucionalista de 1905, a nação iraniana busca se conectar com a ideia “ocidental” de que as pessoas têm direitos irrevogáveis. Mousavi é realmente um pragmático e no passado, quando primeiro-ministro, fechou uma universidade e assinou ordens cumpridas pela polícia de costumes. Contudo, como Khatami, que hoje o apoia, cruzou uma fronteira proibida e, exprimindo aspirações de milhões de jovens e mulheres, delineou um programa inaceitável para o núcleo teocrático do poder. No seu ano 30, longe de aquietar-se, o movimento revolucionário lança-se contra a censura, a repressão cultural e uma política externa articulada em torno do antissemitismo.
“A doutrina ocidental do direito de resistir a um mau governo é estranha ao pensamento islâmico.” A fórmula de Lewis, que está na sua obra mais importante, tolda a visão sobre o que acontece no Irã. O pensador, fonte intelectual da política do governo Bush para o mundo muçulmano, não pode conceber que muçulmanos arrisquem sua vida em nome da liberdade.
Um eco surdo do pensamento de Lewis emanou de ninguém menos que Lula. Logo depois de Ahmadinejad comparar as manifestações a conflitos entre torcidas de futebol, o presidente brasileiro investiu-se da função de boneco de ventríloquo do iraniano e descreveu os eventos de Teerã como “uma coisa entre flamenguistas e vascaínos”. De uma estupidez só superada pela sua imoralidade, o comentário veiculava um apoio incondicional ao poder que reprimia os protestos, prendia opositores e censurava meios de comunicação. Mas, inadvertidamente, ele sintetizou uma visão de mundo. De acordo com ela, o “direito de resistir a um mau governo” equivale à baderna, incômoda, mas infantil, de pessoas tomadas por uma paixão cega.
Também na versão oficial do Irã os cidadãos não têm vontade própria – e as manifestações seriam incitadas pelo Ocidente e pela “mídia estrangeira”. Lewis registrou que a Revolução Iraniana foi o primeiro movimento revolucionário “midiático” da História, pois Khomeini lançou suas proclamações pela TV, desde o exílio. A revolução na revolução que está em curso não é uma invenção da “mídia estrangeira”, mas depende, igualmente, da difusão instantânea e global das notícias. E cada uma das imagens e palavras captadas nas ruas em revolta evidencia uma verdade simples: esses muçulmanos persas não são, afinal, muito diferentes de nós.
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