Na “Folha de S.Paulo” do dia 6 do corrente, leio que “90% dos brasileiros acreditam estar entre os mais pobres” — ou seja, nove entre dez de nós se classificam como estando na população com renda mais baixa do país, escapando da classificação como ricos, de acordo com a pesquisa realizada pelo Datafolha.
A matéria assinada por Júlia Barbon reitera os mesmos achados de uma pesquisa qualitativamente orientada que realizei com a colaboração da Fundação Getulio Vargas do Rio de Janeiro, em 2003, ao mesmo tempo em que abre a oportunidade de elaborar outras dimensões afins a esse tema crucial.
Numa pesquisa realizada há mais de uma década, encontrei os mesmos resultados: apenas 2% dos brasileiros seriam ricos! A maioria absoluta (98%) dos investigados considerava-se “classe média” ou “pobres”. E, eis um dado surpreendente: 33% da classe de consumo A-B (caracterizada pelos parâmetros da época) definiam-se como pobres!
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Ser rico no Brasil é bom, mas deve ser dissimulado. Provavelmente, porque a riqueza (mas não a nobreza) tem, na sua concepção brasileira, um toque balzaquiano de roubalheira, de má-fé ou de — adivinhem! — corrupção. E os jornais estão aí para demonstrar isso de modo avassalador.
Numa entrevista realizada em São Paulo, em 1992, numa pesquisa que originou o projeto da FGV, um informante de “classe média” insistia em dizer que era “pobre” enquanto eu tentava inutilmente demovê-lo, apontando para os bens que possuía. Um ponto demarcador de sua opinião porém, era definitivo. “Sou ‘pobre’ — explicava — porque tenho que trabalhar!” O trabalho como batente e castigo, e não como chamado, ideal ou vocação, obrigava-o a sair de casa.
Não há dúvida de que os “ricos” são lidos no Brasil como milionários e, por isso, quem pertence tecnicamente e por critérios “objetivos” (bens, moradia, educação etc…) à chamada “classe média” se diz “pobre”. Na minha opinião, o eixo rico/pobre é fundacional na cosmologia brasileira marcada pela escravidão e por gradações. O sumiço dos ricos não seria porque os pobres não têm ideia da miséria geral e da imensa desvalorização do trabalho, mas porque têm uma clara noção da enormidade dos seus ganhos e estilo de vida, tal como encontrei nos meus achados dos anos 90 (a serem publicados em livro no próximo ano). Os “ricos” são os que escapam do trabalho. São os que, além de terem mochilas e malas de dinheiro, têm os bens bloqueados pela Justiça, possuem sítios e muitas moradias e — eis um ponto importante — são abençoados com sorte, talento (caso dos artistas e astros de futebol) e com a “política” que os leva ao “governo” — cujos tesouros, sendo vagamente de todos, não são de ninguém…
A desconfiança da riqueza obriga a escondê-la. Bom seria fazer uma pesquisa com os muitos ricos. Suas respostas ajudariam a determinar quem é pobre e, indo além, compreender a mitologia da “classe média” — essa criação do capitalismo americano.
Um outro elemento que o nosso trabalho revelou foi a crença absoluta na impossibilidade de jamais liquidar a polaridade rico e pobre. Para os nossos entrevistados, ricos e pobres estavam ligados por laços de dependência, o que certamente explicava a legitimação de riqueza espúria, desde que quem conseguisse locupletar-se não deixasse de lado suas obrigações morais com os pobres. E aí, penso, está o centro do nosso populismo. Os ricos precisam dos pobres e estes dos ricos. Há um enlace ético que, obviamente, dispensa soluções liberais, leva à tentação do despotismo populista, amplia a idealização do Estado como um estabilizador social exclusivo e elimina as classes intermediarias. Não teríamos luta de classes, mas um pacto entre ricos e pobres. Estes “cuidando” daqueles, como gostam de prometer os populistas.
A ausência da visão quantitativa (saber com mais precisão quanto ganham os outros) leva a um reforço da desigualdade, vista não como um erro ou engano do sistema, mas como um valor cosmológico essencial e, neste sentido, correto, como mostram as análises críticas do capitalismo. A “classe média” como uma mediatriz entre os extremos de riqueza e pobreza não tem lugar numa sociedade que saiu do escravagismo sem abandonar sua matriz aristocrática, na qual ninguém é igual. Nem perante a lei, nem perante o Estado, o qual, no caso do Brasil, salvou da “pobreza” a massa de “brancos” apadrinhados que não podiam realizar as tarefas destinadas aos ex-escravos. Não era por acaso que minha avó chamava a nossa família de funcionários públicos de “pobres envergonhados”.
Há mais a dizer, mas sugiro que o leitor aguarde o livro.
Fonte: “O Globo”, 13/12/2017
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