Começo hoje um conjunto de 12 artigos de reflexão sobre nossa cidade. Embora tenha quase 30 anos de “militância” em temas da macroeconomia do país, é no Rio que moro e, tendo organizado nos últimos anos dois livros de coletânea sobre o Rio, referentes ao estado e à cidade, meu interesse pelo tema naturalmente aumentou.
[su_quote]Se aspiramos a viver num espaço civilizado, temos que aprender a respeitar a lei[/su_quote]
Escolhi 12 temas que entendo deverem ser parte integrante de qualquer visão de longo prazo sobre a cidade em que vivemos. Eles não compõem uma lista definitiva e, esclareço desde o início, a última coisa que pretendo é me considerar dono da verdade. Há gente — entre eles, alguns amigos — dedicada a esse esforço de reflexão há vários anos e respeito muito a opinião de quem se debruça nestes assuntos há mais tempo do que eu. Entretanto, como dizia uma cantora bastante conhecida na Argentina há lá se vão mais de 40 anos, “Pobre de mí/ Que en esta tierra nací / Y en outra no sé vivir”. O fato de viver aqui dá certo direito a opinar sobre este nosso cantinho do mundo. Vamos usá- lo, então.
O tema de hoje é a necessidade de dar um fim ao estado de complacência que acomete a sociedade carioca, tendo praticamente se incorporado à idiossincrasia local e do qual alguns acontecimentos trágicos recentes são, de certa forma, um reflexo. Simon Anholt, autor do ranking sobre as nações mais admiradas do mundo, opinou certa vez que “o Brasil é um país que desperta carinho, mas não respeito”. O mesmo pode ser dito sobre o Rio. O resto do mundo nos vê com simpatia, mas temos muito a avançar se pretendemos nos igualar a cidades que são marcas globais, como Nova York, Londres, Tóquio ou Milão.
Essa nossa complacência com o que é irregular se manifesta nas mais diversas formas. Tome-se o caso do filme lançado ano passado sobre o Rio, seguindo o modelo de chamar alguns diretores consagrados para filmar pequenos episódios da vida da cidade. No primeiro deles, uma mendiga, vivida por Fernanda Montenegro — sempre excelente nas suas representações — está escovando os dentes no chafariz de uma praça, quando se aproxima um guarda que, com bons modos, explica que ela não pode escovar os dentes no chafariz e pede para deixar de fazer isso. Note-se que o guarda estava zelando pela ordem pública e de forma educada. No filme, ato contínuo, aparece um personagem — que depois ficamos sabendo que é neto da mendiga — que, para delírio do público, empurra e joga o guarda dentro do chafariz, enquanto ele e a mendiga fogem. Embora se trate de algo sem muita importância e a cena seja de fato engraçada, não deixa de ser uma completa inversão de valores, pois a cena incita a que o público se insurja contra o que era, pura e simplesmente, a manifestação da ordem pública!
No mesmo filme, um Wagner Moura também em atuação impecável faz o papel de um jovem revoltado com a vida e praticante de asa-delta. Numa cena famosa e que acabou gerando um atrito com as autoridades eclesiásticas, o personagem do ator está no alto, passando perto da estátua do Cristo no Corcovado e, na sua indignação contra o estado das coisas embaixo, na cidade, faz um discurso raivoso na base de “é, daqui de cima é tudo bonito, mas os problemas você não vê, não?” e, em determinado momento, ao falar das mazelas da cidade, exclama: “a polícia matando todo mundo!”, e continua com a sua descrição de nossos problemas. A cena é construída evidentemente para angariar a simpatia do público para com a revolta do personagem. O que é sintomático é que o personagem não diz, na sua fala, que “os bandidos estão matando todo mundo”: ele reclama da polícia e não dos bandidos! Por mais sérios que sejam os nossos problemas nesse campo, como no caso anterior, qualquer observador estrangeiro notaria imediatamente a inversão de valores contida na cena.
O ponto a ressaltar é que, ao longo das décadas, o Rio de Janeiro tornou-se o símbolo de algo que é uma chaga nacional e que foi sintetizado na famosa expressão “Ilegal, e daí?”. Combater essa cultura da complacência com as irregularidades de todo tipo é uma condição importante para que haja uma guinada nos rumos da cidade. Se aspiramos a viver num espaço civilizado, temos que aprender a respeitar a lei.
Fonte: O Globo, 08/06/2015
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