A economista Zeina Latif avalia que o mercado financeiro está mais “sensível” com os sinais dúbios do governo Jair Bolsonaro em relação ao controle das contas públicas: o presidente chegou a afirmar que havia uma discussão para mudar o teto de gastos.
Para Zeina, o pior da crise provocada pela pandemia já ficou para trás – com a queda de 9,7% no PIB no segundo trimestre. Mas ela acredita que a retomada será lenta. Em 2021, projeta um crescimento do Produto Interno Bruto (PIB) entre 2% a 2,5%.
“O mercado financeiro está sensível e, se a gente for olhar, o comportamento dos principais preços de ativos parece bastante claro que tem preocupação com o risco fiscal ainda que o cenário que prevalece hoje no mercado é que a disciplina fiscal vai ser mantida”, afirma Zeina.
A seguir os principais trechos da entrevista concedida ao G1.
Qual é o quadro atual da economia brasileira?
Os dados deixaram muito claro que o fundo do poço foi em abril. Depois, houve uma tendência positiva dos indicadores, mas é um movimento puxado principalmente pela venda do varejo, e a razão principal é o efeito do Auxílio Emergencial, que acabou sendo uma injeção muito forte de recursos na economia. Estamos falando numa média de R$ 50 bilhões ao mês.
Essa recuperação das vendas do varejo, que já está em patamares comparáveis ao da pré-pandemia, pode ser um pouco artificial. Podemos ter aí sustos conforme a gente caminhe para o fim do programa, mesmo que lá na frente tenhamos algo como o Renda Brasil. Não dá também para imaginar que essa recuperação vai ser igual nos diferentes segmentos e setores da economia tanto pela questão da saúde como por questões estruturais. Há um estímulo à demanda, mas que não vai ter o mesmo impacto do lado da indústria, por exemplo. E isso é importante ser dito porque a indústria tem um impacto multiplicador na economia mais importante do que dos outros setores.
Será uma recuperação bastante gradual, então?
Esse é o ponto. Não dá para gente achar que esses indicadores mais fortes com um efeito base vão continuar nesse ritmo. Pelo contrário. Eu acho que a tendência é ser muito lenta.
De quanto deve ser o crescimento econômico em 2021?
Eu acho que o Brasil tem um crescimento em 2021 que vai ser mais para 2%, 2,5% do que para 3,5%. Uma coisa é você estimular a demanda e isso criar um efeito de curto prazo. A outra coisa é, de fato, você conseguir ter um crescimento maior num quadro em que as empresas vão ter problemas financeiros, dívidas em atrasos, impostos em atraso. E obviamente a questão estrutural de um país em que, principalmente, a indústria foi perdendo competitividade.
Nas últimas semanas, houve um aumento da preocupação com a área fiscal do país. Qual é a sua avaliação?
De fato, o risco fiscal preocupa bastante. O espaço para erros e para não avançar em reformas estruturais diminuiu. O país não tem a margem que teve lá trás o governo Dilma. Isso é um ponto importante.
Agora, por outro lado, ainda que com muito erros, com trombadas ali, dificuldades no Congresso e com todas as divisões que existem dentro do governo não dá para dizer que é um governo que vai sair rasgando todos os manuais. Bem ou mal há uma preocupação em relação a isso. É só a gente ver como foi a reação diante daquela derrota no Senado para a correção do salário do funcionalismo, tentaram correr atrás para segurar na Câmara.
Há um debate grande sobre a capacidade do governo de manter o gasto social.
Especificamente a razão do Auxílio Emergencial era o isolamento social, que impedia as pessoas de sair de casa para trabalhar. Não se trata de estimular consumo, se trata subsistência. O programa foi mal calibrado e ficou muito claro que foi além disso.
Quais são esses problemas de calibragem?
Ele foi mal calibrado em termos de focalização e de valor transferido. É um valor alto em relação a realidade da nossa população. Para uma parcela, significou um aumento de renda importante, principalmente em cidades menores. Então, a primeira coisa é que, qualquer discussão de continuidade do programa, precisa ter essa discussão de como focalizar e calibrar o programa. Isso não foi feito na primeira ampliação do programa. Esse cuidado não existiu e já foi um equívoco.
O governo tem mandado sinais dúbios sobre as regras fiscais. O presidente, por exemplo, já disse que há uma discussão para furar o teto. Qual é a leitura que você faz?
Eu vejo o presidente muito pragmático. E acho que ele solta esses balões de ensaio para testar os mercados. O lado positivo é que ele se preocupa com a reação. Na hora em que ele vê a reação ruim do mercado, recua.
O mercado financeiro está sensível e, se a gente for olhar, o comportamento dos principais preços de ativos parece bastante claro que tem preocupação com o risco fiscal ainda que o cenário que prevalece hoje no mercado é que a disciplina fiscal vai ser mantida.
Mas como você avalia essa divisão que tem surgido entre os integrantes do governo?
Essa divisão dentro do governo reflete os dois lados da preocupação do Bolsonaro. De um lado, não perder o apoio do mercado. Mas, por outro lado, a sua intenção de fazer política de investimentos e transferências de renda já olhando as eleições. Eu acho que o Bolsonaro vai ficar o tempo todo tentando equilibrar esses dois lados da balança. É difícil a gente dizer se vai pender para um lado ou para outro. Mas dá para gente dizer que o risco fiscal aumentou.
E a chamada agenda liberal do governo, tem força para continuar?
A agenda liberal é só do Ministério da Economia, não do governo. Isso desde a campanha eleitoral. O Bolsonaro nunca escondeu que ele não tem convicção com a agenda liberal.
Sem uma agenda clara, quais avanços podemos esperar desse governo?
Determinados temas são de interesse do Congresso como, por exemplo, a aprovação do marco do saneamento. Tem coisas que podem avançar. Na discussão tributária, eu vejo o Congresso querendo avançar com a proposta da Câmara, não com a do governo.
A minha preocupação é que quando existem muitas propostas de reforma tributária, não tem nenhuma. Eu temo que a gente não vai ter coisas muito concretas, lembrando que o tempo corre contra essas reformas. A aproximação da campanha impacta nos cálculos políticos do Bolsonaro, que já não têm um perfil reformista.
Fonte: “G1”, 02/9/2020
Foto: Marcelo Brandt/G1