Quando fiz 80 anos, há algum tempo, pois tudo passa, meu amigo, o professor Dick Moneygrand, foi impiedoso: “Como você está escrevendo os capítulos finais de sua vida?”
A penosa interrogação não pareceu apropriada, pois tanto para mim quanto para o Brasil visto como sociedade e cultura, a idade eleva e nos transforma em “velhinhos” modelados no Papai Noel, com o branco dos cabelos e da barba sinalizando pureza, paciência e bondade, num desdobramento da nossa autoridade. Ademais, os 80 exprimem um ponto fixo: a “velhice” vista com nitidez nos nossos álbuns de fotografia, pois ali nos enxergamos tanto como estados fixos (meninos, rapazes, homens feitos e velhos) quanto como perturbadoras figuras mutantes e instáveis.
Os 80 englobam tudo o que fomos e interrogam rigorosamente o que ainda podemos ser.
O problema dos 80 é o seu esplendor para quem dá os parabéns, mas nem tanto para quem os recebe. A chegada nessa década é radicalmente (repito: radicalmente!) diversa de entrar nos 20, 30 e 40 — na “força da idade”, como diz Simone de Beauvoir —, pois nessa estação antevemos, como remarca o realismo do meu amigo americano, uma progressão para, digamos gentilmente, a saída do palco (e do teatro…).
Em sociedades que se imaginam permanentes e, por isso mesmo, estão sempre se revolucionando, basta olhar o mármore e o bronze das suas estátuas, o aço dos seus prédios, as suas constituições e estatutos, para se ter noção da nossa ambivalência relativamente ao diálogo entre o permanente e o episódico. O Ocidente reproduz pessoas e cenas em objetos, o que não é realizado em muitos sistemas e culturas.
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Aos 80, observamos a metamorfose das idades ou a idade como metamorfose. Demora um pouco a chegar aos degraus que apagam receios e tentam instalar projetos, amores definitivos, determinações e destinos.
As festas de aniversário — pouco ou nada vistas nas sociologias; esses rituais de passagem, fabricação e estabilização de corpos e almas — dramatizam essas dimensões. Em todas as sociedades há consciência do que se pode ou não fazer dos 10 aos 80 anos. Esses ritos de passagem focalizam esses aspectos. Cada restrição e permissão (elas são interdependentes) demarca uma fase que vai do nascimento até a morte. Não há passagem sem uma demarcação, conforme ensinou Arnold van Gennep.
No nosso caso, o bolo — fabricado com ovos, leite e farinha, devidamente vestido de açúcar e ornado pelas velinhas que anunciam a idade do aniversariante — é uma entidade central. Colocado numa mesa — esse móvel metafísico dotado de alma e igualmente vestido com uma bela toalha —, ele remete a outro móvel igualmente transcendente: a cama na qual os presentes eram postos e na qual o festejado foi fabricado. Na mesa —essa cama de pernas altas onde os mortos eram velados —todos se deleitam com “comidas” marginais — “docinhos” e “salgadinhos” que não podem competir com o “bolo”. Bolo que exprime, entre muita coisa, confusão mas que, naquele contexto, é o aniversariante transubstanciado, pois deve ser obrigatória e devidamente comido, num inocente festim canibal.
Não fosse mamãe, eu não adoraria chocolate — a massa elementar do bolo do meu aniversário de 10 anos.
Tudo isso para exprimir minha admiração e meu afeto aos 80 anos do imortal e diretor referência do cinema nacional Cacá Diegues. Numa deliciosa entrevista concedida ao GLOBO, o aniversariante — com a serenidade que o distingue — remarca que ainda tem planos, pois deseja filmar uma sequência do seu “Deus é brasileiro”, com um título mais condizente (e esperançoso) com o obscuro momento que vivemos. Assim, o “Deus é brasileiro” seria mudado para “Deus ainda é brasileiro” pois, apesar de todos os descalabros, mesmo aos 80, Cacá não desistiu do Brasil.
Pegando a deixa e guardando as óbvias proporções, eu também imagino reescrever o meu “Carnavais, malandros e heróis”— de 1979 (quando o publiquei) para cá, os graves e importantes sermões do politicamente correto suprimiram o riso carnavalesco; os ladrões suplantaram os malandros; e o Brasil, como enxergamos entre a vergonha e o horror, continua precisando de heróis ou, quem sabe, de super-heróis, esses deuses inventados pela sofrida solidão pós-moderna.
Fonte: “O Globo”, 27/5/2020