O dicionário vai dizer de onde vem a palavra bruxo ou bruxa. Mas nenhum vai informar sobre o seu significado profundo.
Quem fez isso foram os antropólogos que — a partir de 1934, com a publicação do livro de E. E. Evans-Pritchard sobre os azande (um povo do sul do Sudão) — revelaram como a “bruxaria” é um idioma destinado a explicar infortúnios e acidentes, exibindo suas causas finais. O “porque” o desastre foi ocorrer justamente com os nossos filhos, e não com os dos nossos vizinhos ou desafetos.
A aceitação do acaso como um fenômeno não intencional é um problema no universo humano, obcecado com equilíbrios, retribuições e motivos moralmente ancorados. Afinal, o tamanho do infortúnio deve ter alguma relação com a pessoa afetada. Se existe responsabilidade nas nossas vidas, por que não haveria também nos acidentes?
Se o pai é superior, ele, em contrapartida, tem mais deveres e muito mais culpa como doador de rumos e exemplos do que o filho. É o tal domínio do fato que a teoria dos papéis sociais desvenda em socioantropologia.
Diante do desastre, somos levados ao doloroso processo de suspeitar o inocente da inocência; ou procurar o bruxo produtor da feitiçaria que coloca em dúvida a plausibilidade moral do mundo.
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Nas sociedades tribais, as relações sociais são múltiplas, porque todos são filhos, irmãos, primos, cunhados, tios e sobrinhos do chefe, do curador, do profeta ou do rei. Nelas, a bruxaria estaria ligada a essa multiplicidade de elos sociais que nem sempre funcionam em harmonia e conduzem aos conflitos de interesse com que — pasmemos todos! —, pela primeira vez, estamos tendo que lidar seriamente no mundo público nacional.
A bruxaria denuncia como o coração humano tem, parafraseando Pascal, razões que o próprio coração desconhece. E que Freud situou na dinâmica entre o coletivo (o superego ou o todo), o individualizado (o ego ou a parte) e o id (o “isso”, o desejo) que a consciência se vê obrigada reprimir e esconder. Seja o amor secreto pela irmã, o desejo pela exclusividade amorosa dos pais ou o êxito do cunhado.
Contradições entre motivos nos levam a buscar o feiticeiro ou o analista (significativamente chamado de “encolhedor de cabeça” nos Estados Unidos). Recolhidos ambos em seus consultórios e cobrando pelos segredos íntimos que lhes contamos, eles — como os confessores — têm em comum um relativo abandono do mundo. O poder oracular decorre do seu olhar distanciado. Usando cartas (que não mentem), búzios, veneno e galinhas (como fazem os azande), eles teriam a capacidade “objetiva” de dar intencionalidade ao acaso e ao malefício.
Os papéis sociais que nos envolvem são (para desengano dos tiranos) sempre limitados. O papel de presidente tem como complemento o de povo; o de rico tem no de pobre o seu chão. O de adulto é complementado pelo de criança, o de vivo tem no morto sua contraparte; e o de professor tem no aluno sua fonte de legitimidade. Note que os papéis de um pai bancando um filho produz doença ou anomia — essa bruxaria tão nossa conhecida. Nestes casos, um papel não existe sem o outro, e eles são regidos por ética, e não por lei. Aqui, invocação da lei é sinal de crise.
Mas tudo se transforma com a invenção do “Estado” e da soberania centrada num território exclusivo. Agora, os papéis sociais fundados na reciprocidade da casa e na aldeia começam a competir com os “cargos” administrativos cujo centro não é mais o “sangue”, mas a coletividade e as ambições políticas. A passagem da casa para a rua — como tenho revelado na minha obra — é complicada.
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A necessidade de atribuir intenções, sem as quais não há moralidade ou sociabilidade, continua, só que ela se complica com o “Estado”. Agora, o bruxo não é mais o egoísta frustrado e fechado em si mesmo e na sua sovinice, como o Scrooge de Dickens, mas o ocupante de um cargo público obtido por competição livre, cujo alvo é o bem-estar nacional. Há uma severa e — como mostra a crise da crise brasileira — perversa divisão. De um lado, o bruxo prestes a virar “político” pensa na sua tribo e casa, mas; de outro, ele é forçado a honrar novas e amplas lealdades com o seu partido e eleitores. Essas lealdades podem, numa democracia, ser usadas umas contra as outras.
As antigas lealdades de aldeia produziam bruxarias, as novas lealdades políticas nacionais e internacionais produzem contradições. O bruxo vira o político, e a bruxaria se transforma num conjunto de opiniões legais paradoxais que só o bom senso (e haja bom senso!) pode resolver. Nesse caso, bruxaria é propina — esse laço entre o tribal e o nacional que fez com que o Brasil! fosse vendido e comprado.
PS: Repudio veementemente a violência contra o acampamento dos apoiadores do ex-presidente Lula. Ela assassina o diálogo que nos torna civilizados.
Fonte: “O Globo”, 02/05/2018