Vivi o absurdo da violência americana em Cambridge, Massachusetts, em 22 de novembro de 1963, quando John F. Kennedy, presidente dos Estados Unidos, foi assassinado.
Fiquei chocado com a brutalidade do evento. Na rua, vi a etiqueta das distâncias de uma Cambridge individualista ser substituída por abraços entre desconhecidos. E uma Harvard, cujo propósito seria tudo entender, sem nenhuma teoria plausível para esse assassinato — exceto aquelas suposições que eu bem conhecia, como a conspiração ou a bruxaria.
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Fui imediatamente engolfado por uma onda de consternação e fiquei surpreso com a minha solidária comoção num país desconhecido cujo sistema econômico eu tanto criticava.
Hoje, mais velho e menos sábio, entendo que fui sufocado pelo coletivo. O que vivi foi o que se vive quando há uma guerra, e os papéis sociais rotineiros são englobados pelo de patriota. O que sucede quando aviões de passageiros pilotados por terroristas estrangeiros derrubam torres? Surge um inimigo comum, e as segmentações internas se aplacam.
Quando, porém, um membro de nossa própria sociedade assassina colegas e professores em escolas, liquida homossexuais numa boate que ele mesmo frequentava, atira mortalmente dentro de igrejas e em shows, assassinando fria e solitariamente multidões, o caso é muito mais soturno.
Se vivo estivesse, Émile Durkheim o chamaria de anômico, algo pior do que uma doença, porque indica menos que a falência, a contradição entre regras e, mais além, a desconfiança da nossa fé não em Deus, é claro, mas na nossa autoatribuída racionalidade. Na certeza compartilhada de que vivemos num mundo guiado por ciência e tecnologia, no qual toda a ação humana teria interesse, motivo e desejo.
Uma visão da sociedade como sendo feita somente de indivíduos promove suas cegueiras. Uma delas é poder comprar armas mais facilmente do que um carro nos Estados Unidos. Donde a nossa perplexidade diante da força dos atos implosivos como o incesto, a autoflagelação, a traição e o ódio não contra nossos inimigos ou exploradores, o que seria normal, mas contra nós mesmos.
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Quando vivi a onda de assassinatos na América dos anos 60 (dos Kennedys e de Martin Luther King), mesmo não sendo americano, eu sofri a coerção da coletividade. Fui pressionado de fora para dentro, tal como ocorre com a “moda”, que nos faz cortar o cabelo desta ou daquela maneira que meses antes julgávamos absurdo.
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Estava pensando em tais assuntos, quando topei com o ensaio de Elif Batuman publicado na revista “New Yorker” no dia 27 do mês passado. Nela, a conhecida ensaísta tenta compreender os motivos dos assassinatos de massa que ocorrem com força epidêmica nos Estados Unidos. A epidemia, vale lembrar, não acontece por decisão pessoal, mas por contágio. Mas, eis o ponto, como explicar esses assassinatos a bala nos quais se matam compatriotas? Olhando a vida desses homicidas, não encontramos nada de relevo ou freudianamente traumático. Há neles, entretanto, um enigma que desafia nossas boas e velhas estruturas explanatórias — exceto a de assumir a nossa sempre renovada ignorância ou cair na cura pela repressão, o que é uma outra patologia.
Na sua busca, Batuman me reconduziu a um feliz econtro com o escritor americano James Baldwin. E, na sua letra, há a tese por mim compartilhada de como o desabrido individualismo americano conduz a um ideal de “pureza” (uma alergia ao “outro”, sobretudo aos negros) que nutre o patológico. Tal como o politicamente correto pode conduzir ao nazismo, o populismo desenfreado ao despotismo e o comunismo oficializado à nomenclatura — a uma aristocratização burocrática.
No individualismo, o reprimido é o coletivo que volta com força nos assassinatos. Já no Brasil, onde o todo e as relações sempre predominam sobre as partes, temos um coleguismo corporativo, partidário e abusivo, o qual alimenta a corrupção.
Se os ianques sofrem de um patológico individualismo; se lá há, como diz Baldwin, um fracasso “das conexões cruciais mais elementares”; aqui há um excesso de conexões, de dívidas e culpabilidades que nos colam uns aos outros até mesmo contra a lei.
Foi quando me perguntei: por que eles lá se matam tanto; enquanto nós aqui roubamos tanto de nós mesmos?
Mas quando ia desenvolver esse ponto, eis que acabou o espaço da croniqueta…
Fonte: “O Globo”, 06/12/2017
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