Por muitos motivos. Primeiro porque é uma palavra muito pesada, infinita e definitiva. Em certos contextos ela é um não final e irremediável. Vale como uma eternidade – esse mistério familiar aos astrofísicos que, volta e meia, encontram planetas com probabilidade de ter vida tal como a entendemos, mas que estão a 100 anos-luz de distância…
A segunda razão é mais simples. A palavra nunca é, na nossa língua, uma das campeãs dos cacófatos – mensagens que, por descuido, falamos ou escrevemos pomposamente como “nunca acaba”, “nunca ganha”, “nunca nada”, “nunca nisso”… Se você leitor acostumado a somente ler essas micromensagens no seu smartphone e não compreendeu, leia em voz alta as expressões escritas acima e veja como elas lhe apresentam com um duplo sentido de mau gosto. Aliás, por falar em cacófato, uma das bobeadas mais comuns usadas pelos nossos nobres escribas são os “anos atrás…” como se eles pudessem estar na frente.
A aristocracia nunca acaba, disse um velho reacionário quando fizeram a Revolução Gloriosa e a Francesa. De fato, ela continuou em muitos países e assumiu diversas formas em muitas coletividades, todas socialmente fascinantes porque, como uma excelente camuflagem, o comando, o gerenciamento e a admiração surgem como dominação, como dizia Max Weber. Em outras palavras, em todo lugar surgem melhores e piores, feios e bonitos… Da família aos governos, distinguimos os refinados dos toscos e, pior que isso, não há a menor dúvida que os de maior mérito são, lamentavelmente, minoria.
No campo aberto e até anteontem, relativamente inocentado do esporte e do “show business” que nós pomposamente chamamos de “cultura”, a aristocracia se refaz com e como talento o que tira o fôlego e dá dor de estômago nos fóbicos – naqueles que têm opiniões fixas sobre o sistema em que vivem. No Brasil, conforme tenho reiterado neste espaço inúmeras vezes, eles são legião e se caracterizam por enxergar exclusivamente apenas um lado do mundo.
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Tudo isso para ressaltar que o grande evento da semana, do mês ou ano não foi o conflito potencial entre Estados Unidos e o mundo árabe (no qual os nossos compenetrados comentaristas-especialistas misturam Irã com Iraque), mas um exemplo de como o nunca se desfaz ou corre o risco de liquidar-se porque enredo cultural e humano é sustentado por valores e opiniões, desejos, conflitos e contradições e não por forças naturais imutáveis das quais desconfiamos cada vez mais a cada dia.
Refiro-me ao curioso e paradoxal plano de abandonar a aristocracia do familiar e simpático “príncipe Harry”, cujo nome completo contém uma verdadeira multidão de pessoas como cabe aos ultranobres. De direito e sangue, Henry Charles Albert David é o filho mais novo de Charles, príncipe de Gales e da célebre Diana, princesa de Gales. Seus avós paternos são a rainha Elizabeth II do Reino Unido e o príncipe Philip, duque de Edimburgo. Ele próprio é duque de Sussex e conde de Dumbar na Escócia; e barão de Kilkeel, na Irlanda do Norte. Em virtude do laço matrimonial, sua esposa – a plebeia e cidadã americana Rachel Meghan Markle – se tornou duquesa e condessa. Mas, como foi amplamente noticiado, eles devem abrir mão dessa natureza nobre e aristocrática para viver como “pessoas comuns”.
Não pensem que estou condenando. Nada disso. Estou apenas chamando atenção para uma outra reação que ouvi na base do brasileiríssimo “como é que pode?”. Pois, para muitos, abandonar a aristocracia surge como um projeto negativo e uma burrice.
Realmente, como num país onde todos os que se dizem ao lado do povo e trabalhando por ele – aliás chegando até mesmo a enriquecer e ficar acima das leis mais básicas pelos cargos que ocupam em seu nome – formando uma imensa e sólida realeza podem entender esse movimento para fora da aristocracia? Como é que uma nobreza que usa sem hesitar o “Você sabe com quem está falando?” não fica espantada com esse incompreensível adeus à aristocracia de Harry e Meghan?
A verdadeira burrice é, para as elites do Brasil abrir mão – dizer um nunca – a tudo o que implícita ou explicitamente ela gostaria de ter de volta: nobreza e aquela superioridade indiscutível que só surge a todo vapor infelizmente no carnaval.
Fonte: “O Estado de São Paulo”, 15/1/2020