O país está vivendo uma explosão de manifestações de rua, que contrastam fortemente com as que caracterizaram as Jornadas de Junho. As atuais nada têm de autônomas, independentes, voltadas para uma noção do bem comum, embora esta fosse tomada de forma vaga. Ao contrário, elas se caracterizam pelo controle, são todas oriundas daquilo que se pode considerar como movimentos sociais organizados. O brilho da autonomia está sendo suplantado pela heteronomia.
Logo, qualquer termo de comparação tende a ofuscar o que está realmente em causa. Em comum, têm só a bandeira contra a Copa, pela simples razão de ser uma bandeira que havia sido encampada pelas ruas brasileiras. Cessa aí o que têm em comum. Note-se que as manifestações de São Paulo foram conduzidas pelo Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto (MTST), que nada mais é do que um braço do MST. Historicamente, esse dito movimento social está umbilicalmente ligado ao PT. Foi, inclusive, acolhido pela presidente da República quando da invasão de uma área urbana próxima ao Itaquerão, um dos palcos da Copa do Mundo. Não faltaram, certamente, intermediários.
A invasão, ao contrário do que vinha sendo a regra do atual governo, deu lugar a um encontro com a presidente, que acabou por adotar um comportamento propriamente lulista. O jogo é perigoso, pois o acolhimento pode dar lugar ao transbordamento. Ainda em São Paulo, há os protestos de professores municipais, tradicionalmente ligados ao PT, apesar de seu movimento estar dirigido contra uma administração municipal petista. Processo análogo ocorre com os rodoviários do Rio de Janeiro, infernizando a vida dos cariocas, que têm o seu direito de ir e vir simplesmente negado. Em Pernambuco, são policiais militares que entram em greve, desobedecendo flagrante e acintosamente a uma decisão da Justiça do Trabalho que considerou a greve ilegal.
Observe-se, nesses casos, que são ações corporativas, fortemente organizadas, oriundas de demandas sindicais, que foram tradicionalmente veiculadas pelo PT e, atualmente, por grupos mais à esquerda que não mais se reconhecem no atual governo. Estão fazendo um jogo de cena, aproveitando-se da oportunidade da Copa para terem as suas reivindicações atendidas. Ocorre que esta rua não é mais a mesma do ano passado!
Consequentemente, devemos fazer a distinção entre esses diferentes tipos de manifestações e as Jornadas de Junho, na medida em que as atuais são o resultado de ações de grupos organizados, os ditos movimentos sociais, em boa parte controlados pelo PT e, também, por grupos mais à esquerda do espectro político. São manifestações instrumentalizadas, inserindo-se num contexto propriamente eleitoral.
Mais especificamente, algumas correspondem a conflitos internos ao próprio PT ou a pressões de grupos esquerdistas de conquistarem mais espaço por meio de lutas setoriais. Em todo caso, há todo um clima de radicalização que começa a se esboçar. Poder-se-ia mesmo aventar a hipótese de que essa radicalização é fruto da tendência eleitoral de queda da presidente Dilma, abrindo espaço para que conflitos intestinos se potencializem.
Neste contexto, não deixa de ser curiosa a reação dos grupos mais afinados com a ideologia tradicional petista, de corte socialista e anticapitalista. Para eles, a mudança significaria voltar a essa mesma doutrina tradicional do partido, abandonando as acomodações “capitalistas” dos governos Lula e Dilma. Pressionando deste lado, eles procuram ao menos conquistar uma maior fatia do aparelho do Estado, notoriamente menor no governo atual do que no anterior. Pretendem ser mais ouvidos e consultados. Vendem mesmo a ideia – duvidosa – de que eventual empenho eleitoral seu poderia se traduzir pela vitória da candidata petista.
Peguemos o exemplo do MTST. Trata-se, como assinalado, de um braço do MST, que está procurando exercer um papel de protagonismo político nas cidades. Ou seja, estamos diante de uma única organização que comporta vários braços, como o Movimento dos Atingidos pelas Barragens (MAB), a Via Campesina, Movimentos dos Pequenos Agricultores, Movimento das Mulheres Campesinas e assim por diante. A tática consiste em mostrar várias cabeças, como se não fizessem parte do mesmo corpo. Essa tática de luta procura expor amplas ramificações como se fossem independentes, com o intuito de capturar a atenção da mídia e, dessa maneira, favorecer a formação da opinião pública.
Ora, o MST e suas ramificações constituem uma única organização de tipo leninista, fortemente centralizada, organizada em departamentos que seguem hierarquicamente um único comando. Não têm nada de espontâneo. Os seus participantes são militantes que se dedicam totalmente à causa revolucionária. A sua ideologia é nitidamente anticapitalista, advogando por uma sociedade socialista. São, no contexto atual, fervorosos defensores da ditadura cubana e do socialismo bolivariano do “século 21”. Em seus discursos, usam para o setor urbano as mesmas bandeiras do rural, como a “reforma agrária”, a desapropriação das grandes propriedades, o desrespeito à propriedade privada, a luta contra o lucro e assim por diante. Ocorre que, durante o governo Dilma, eles foram marginalizados, relegados a uma posição de segundo plano.
Note-se, em particular, que, no campo, a política da atual presidente foi a de qualificar os assentamentos e apoiar a agricultura familiar, em vez de privilegiar as desapropriações, que seriam formas de criação de mais favelas rurais. Há, pois, uma inflexão em curso. Ela obedece certamente a razões de ordem eleitoral. Fica, porém, a questão de qual tipo de estratégia política se trata. Não estará a presidente vestindo um figurino de Lula que foi, para ele, eleitoralmente válido quando da primeira eleição e mesmo para a segunda? Será que essa roupa serve para os dois da mesma maneira? Não estará o número errado?
Fonte: O Globo, 19/5/2014
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