De passagem por Paris, procurei entender a controvérsia em curso hoje na França sobre a reforma da previdência social. O país está dividido entre a pressão de parte da sociedade para preservar regimes especiais de aposentadorias e a necessidade de se ajustar a um mundo em rápida transformação.
A eleição presidencial de 2017 trouxe uma forte renovação na vida política da França. A vitória do presidente Emmanuel Macron contra o establishment e contra os extremos de direita e de esquerda deu-lhe um mandato para reformar o país. Criou-se uma grande expectativa pelo anúncio de reformas muito semelhantes à da atual agenda brasileira: reforma das relações trabalhistas, da previdência social, tributária e da educação, redução de privilégios corporativos e do gasto público, mudanças na economia para melhorar a competitividade dos produtos franceses. Depois de dois nos e meio de governo, não houve muitos avanços: nem os impostos nem o desemprego (8,5%) foram reduzidos, o déficit comercial é crescente e poucas reformas chegaram a ser efetuadas (as 35 horas de trabalho semanal continuam). A crise política e social vivida pelo governo Macron tem como substrato uma rápida deterioração da dívida pública, que em setembro alcançou seu recorde histórico de 100,2% do produto interno bruto (PIB), sem perspectiva de redução do gasto.
As medidas iniciais provocaram forte reação e manifestações dos coletes amarelos. A resposta do governo foi a organização de “grandes debates” para abordar todas as reivindicações populares e as reformas propostas. O resultado dos encontros mostrou algumas áreas de consenso nacional, como a urgência de providências relacionadas à mudança do clima e à redução dos impostos, a melhoria dos serviços públicos e a desburocratização com a redução do papel do Estado. No fim de janeiro Macron apresentará o conteúdo do que chama de “pacto produtivo”. Nele estarão mencionados, entre outros itens, dispositivos fiscais a favor de investimentos no que denominou transição ecológica da economia, o que incluirá pedido para que a União Europeia adote um mecanismo de taxação para evitar a importação de produtos com forte teor de carbono e um programa de investimento voltado para o futuro da indústria 4.0. São esperadas também a redução do Imposto de Renda, medidas na saúde e educação e maior autonomia para governantes eleitos regionalmente.
A apresentação da reforma da previdência levou ao maior movimento grevista depois da 2.ª Guerra Mundial. O país está paralisado há 40 dias e viu ressurgir o poder dos sindicatos, abalado pela ação espontânea dos coletes amarelos, o movimento social mais sério e complexo desde as manifestações estudantis de maio de 1968.
O sistema previdenciário francês mantém muitos privilégios e vantagens, obtidos durante os chamados gloriosos 30 anos que começaram logo depois da guerra e se estenderam durante os anos mais positivos da globalização, de 1989 a 2008. Nesses momentos, reforma significava progresso, avanços sociais para melhorar a vida das pessoas: proteção contra as incertezas, maiores salários, melhor aposentadoria, redução da duração do trabalho. Hoje transformação ou reforma, na visão da oposição a Macron, significa sacrifício e recuo social, isto é, salários reduzidos, mercado de trabalho liberalizado, ortodoxia financeira, orçamentos apertados, aposentadorias retardadas.
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A proposta de Macron previa mudanças significativas, em especial o aumento da idade mínima de aposentadoria de 62 para 64 anos a partir de 2027, a fusão num só dos 42 fundos de pensão, administrados independentemente e o fim dos regimes especiais (ferroviários, militares, policiais, bailarinos da Ópera de Paris, por exemplo, se aposentam com menos de 60 anos e maiores pensões). Propõe também um regime de pontuação pelo qual quanto mais tempo um trabalhador ficar no mercado, mais pontos ele acumula e maior será sua pensão. Hoje 18% da força de trabalho se aposenta pelos regimes especiais com pensões maiores do que a média.
Depois de 18 meses de governo, Macron parece isolado e com crescente dificuldade política. O primeiro-ministro Édouard Philippe continua a negociação com os sindicatos para poder avançar com a reforma da previdência. No fim de semana, para tentar desbloquear as negociações, o governo cedeu e ofereceu retirar provisoriamente a proposta da idade mínima de 64 anos (dependendo de acordo com os sindicatos sobre o equilíbrio e o financiamento das aposentadorias). Com isso é difícil que a reforma consiga reduzir o custo crescente previdenciário (14% do PIB). Essa significativa concessão aos sindicatos contraria o pronunciamento presidencial de fim de ano, no qual Macron reafirmou que não recuaria no tocante ao fim dos regimes especiais, mas admitiu que o caráter universal da reforma não significa uniformidade (concessões foram feitas aos militares, policiais e bombeiros, entre outros). A versão final da reforma será submetida à votação da Assembleia Nacional em fevereiro.
O resultado da queda de braço com os sindicatos determinará o futuro do governo Macron e se a França pode ser reformada e modernizada. Tudo indica que, prevalecendo a força dos sindicatos, a reforma saia bastante diminuída. Macron se enfraquecerá e o centro, representado pelo movimento criado pelo presidente francês, tenderá a desaparecer, a exemplo do que aconteceu no Reino Unido.
A crise interna vai debilitar as ações externas do presidente francês. Defensor do fortalecimento da soberania da Europa, Macron vê a unidade europeia diminuir com a saída do Reino Unido da União Europeia, com a emergência de movimentos nacionalistas e populistas de direita em muitos países europeus e com a saída de cena de Angela Merkel, sua principal parceira. Nesse quadro, com a Europa fragilizada, “à beira do precipício”, num mundo hostil, entre os Estados Unidos e a China, é difícil Macron realizar sua ambição de liderar a União Europeia, como ficou claro agora na crise EUA-Irã.
Fonte: “O Estado de São Paulo”, 14/1/2020