O mundo pós-pandemia não será tão diferente daquele em que os brasileiros vivem na quarentena. Educação, saúde e trabalho serão cada vez mais remotos.
Mais pobres e sensibilizados pelo drama coletivo da pandemia, os consumidores serão mais assertivos na hora de comprar, privilegiando produtos e serviços que conjuguem preço, eficiência e responsabilidade social, por exemplo.
O GLOBO ouviu especialistas e empresários dedicados a antecipar tendências do mundo pós-pandemia e identificou seis forças principais de transformação: distanciamento social e assepsia; austeridade; tecnologia e conectividade, planejamento urbano, responsabilidade social e capital humano.
Confira abaixo como esses vetores promoverão mudanças em seis dimensões da vida:
Trabalho
A quarentena rompeu a barreira do home office. Com funcionários mais produtivos, ou trabalhando o tempo todo, e sem o trânsito para atrasar reuniões, empresas como Twitter e XP gostaram tanto da experiência que já falam em permitir o trabalho de casa para sempre.
A volta às empresas vai dar uma certa mão de obra. Testes rápidos de Covid-19 e medição de temperatura devem virar norma, numa indicação de que a saúde dos empregados será um fator de risco cada vez mais sensível.
Nas fábricas, já se vê mais equipamentos de proteção individual, distanciamento nas linhas e nos refeitórios. Nos escritórios, a tendência é que uma parcela fique em casa um ou dois dias da semana — o que permitirá mais espaço entre as mesas.
— A pandemia vai acelerar mudanças que vinham acontecendo na dinâmica de trabalho, com espaços mais flexíveis e menos hierárquicos — diz o arquiteto Sergio Athie, sócio do Athie Wohnrath, maior escritório de arquitetura especializado em projetos corporativos do país.
O conceito de clean desk, sem mesas fixas, deve se disseminar. Se antes a motivação era produtividade, no pós-pandemia facilitar a higienização falará mais alto. Porta-retrato da família agora só no escritório de casa, que os profissionais tendem a montar.
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Mas o conceito de conforto caseiro também deve invadir os escritórios, com mobiliário mais parecido com o das start-ups, espera Athie. Salas de cafezinho ganham mesas, geladeira e micro-ondas para se almoçar ali mesmo.
As salas de reunião devem ser repaginadas para favorecer a interação com quem está em casa. Sai a mesa tradicional com uma TV na cabeceira, entram poltronas, mesinhas e tecnologias que permitam compartilhar a tela da apresentação sem perder de vista o rosto dos interlocutores.
Família
Em vez de shows de cantores sertanejos, milhões de jovens indianos têm consumido 100 minutos diários vidrados em lives de… matemática. Com as escolas fechadas, foram forçados a migrar para plataformas virtuais de ensino como a BYJU’s, mais valiosa start-up de educação a distância do mundo.
Avaliada em US$ 10 bilhões, a empresa de Bangalore liberou seu conteúdo gratuitamente na pandemia, triplicando o número de novos alunos em suas aulas de apoio on-line filmadas com a destreza de Bollywood.
Embora a maior experiência global de ensino remoto já feita abra um debate sobre sua efetividade e a desigualdade de acesso, há um consenso: a “geração coronavírus” aprenderá cada vez mais com telas. E com maior envolvimento das famílias em casa.
—A educação mudou nos últimos cinco meses o que não havia mudado em dois milênios. Ela será híbrida — diz Virgílio Gibbon, líder da Afya, maior grupo de faculdades de medicina do Brasil.
A Afya prepara a adoção de palestras com holografia. Na Universidade da Carolina do Norte, nos EUA, um professor enviou óculos de realidade virtual para que os alunos assistissem à classe imersos em um simulacro de sala de aula. A empresa Victory XR experimenta levar a experiência às crianças dos EUA.
Na pandemia, muitas famílias tiveram sua primeira consulta médica virtual e tendem a incorporá-la. Na França, a Doctolib fez mais de dois milhões de atendimentos remotos.
A start-up chinesa WeDoctor consulta pacientes com suspeita de Covid-19 de todo o mundo em inglês e chinês, via WeChat. No Brasil, a telemedicina só foi permitida em caráter provisório na pandemia, mas tende a se impôr, prevê Gibbon:
— Com a concentração enorme de médicos no Sul e Sudeste, já deveria ter sido adotada há muito tempo.
Lazer
Quando a quarentena acabar, quem correr para um bar ou restaurante vai encontrar menos mesas, separadas por ao menos dois metros. Não haverá espera na calçada (só entra quem tem hora marcada) nem paquera no balcão.
Menos garçons circulam. Funcionários da limpeza passam à linha de frente, paramentados com máscara, luva e muito álcool em gel. A presença deles será realçada como um fator tranquilizador.
— As pessoas estão com desejo de sair, mas estão com medo. E para mitigar isso, a assepsia vai ser o novo denominador comum — diz Facundo Guerra, fundador do grupo Vegas, que reúne casas noturnas badaladas de São Paulo como Bar dos Arcos, Riviera e Blue Note. — O garçom que sempre foi vendedor, a cara do bar, neste momento representa perigo.
Mesmo superada a atual pandemia, o contato entre as pessoas seguirá cercado pela ameaça do contágio, elevando riscos de negócios ligados ao lazer, com reunião de pessoas num mesmo ambiente.
Guerra tem aproveitado a quarentena para pensar nesse futuro. No Bar dos Arcos, o planejamento do retorno prevê o uso intensivo de QR code. Nada de cardápio rodando de mão em mão.
O cliente acessa o menu pelo celular e manda o pedido diretamente para a cozinha com um clique. O controle de temperatura de funcionários e clientes também deve se tornar padrão, mais pelo efeito psicológico.
Uma tendência forte será a reserva em turnos, entre os quais salão e banheiros passam por desinfecção. Com renda abatida pela crise e dólar nas alturas, os cardápios também vão se adequar à uma realidade mais austera: menos pratos, mais ingredientes locais, preços mais contidos.
Turismo
A pandemia do coronavírus deve transformar o turismo de massa para sempre – só este ano, a perspectiva é de 100 milhões de postos de trabalho perdidos. Para alguns destinos como Veneza, na Itália, onde a exploração turística era vista como excessiva, a parada, embora traga prejuízos econômicos, vai ser uma oportunidade para repensar um modelo mais sustentável.
As exigências de isolamento e para que se evitem aglomerações vão elevar o custo das viagens, favorecendo o turismo mais seletivo, de alta renda. Como as fronteiras entre os países devem permanecer fechadas por mais tempo, destinos domésticos serão privilegiados.
Martin Frankenberg, presidente da Brazilian Luxury Travel Association (BLTA), destaca que após semanas de confinamento, os turistas vão dar preferência ao contato com a natureza, com passeios ao ar livre, seja no campo ou no litoral.
E as primeiras pessoas a se sentirem seguras para voltar a viajar devem ser aquelas que testaram positivo para o coronavírus e adquiriram imunidade. A demografia do turismo também vai mudar. Com os idosos no grupo de risco, a tendência é que tenham mais medo de viajar.
Segundo Frankenberg, num primeiro momento, o turista vai privilegiar estruturas privativas, como casas de veraneio e iates — que antes passarão por uma processo de sanitização. Uma outra tendência deve ser viagens de carro sem motoristas, para destinos ou atividades ao ar livre.
Um dos setores mais afetados pela pandemia, a hotelaria está tendo que se reinventar e encontrar novos usos. A rede Accor anunciou um novo formato de hospedagem: o room-office. Em um momento em que os escritórios e os espaços de coworking estão fechados, a ideia é atender a demanda de quem não está conseguindo se concentrar para trabalhar de casa – sobretudo em um momento em que os filhos também estão fora da escola.
Mobilidade
A aviação pós-Covid-19 será para poucos, eminentemente doméstica e ainda mais penosa. Até que surja uma vacina, voos internacionais serão raros e caros.
Se os atentados de 11 de setembro de 2001 trouxeram filas intermináveis com a obrigação de descalçar sapatos e abrir bagagens no aeroporto, a partir de agora os passageiros terão que lidar ainda com medições de temperatura e máscaras.
Aeroportos devem adotar tecnologias de higienização hospitalar e combater aglomerações, com marcações para espaçar as filas. Dentro do avião, comissários vestirão indumentárias de UTI.
—Será preciso dar mais flexibilidade. Ninguém vai comprar passagem pra voar daqui a seis meses sem ter a chance de alterar o bilhete se houver um segundo surto —afirma o presidente da Latam, Jerome Cadier.
A pandemia também terá consequências no chão. Com a preocupação sanitária e facilidades como o home office, passageiros temerão os transportes de massa. Logo, os sistemas precisarão ser redesenhados para serem mais eficientes, mas precisarão de novas fontes de recursos, prevê Joubert Flores, que atuou por décadas no MetrôRio e hoje preside o conselho da ANT-Trilhos.
Para reduzir o estímulo ao carro, a taxação do transporte individual ganha força, como nos pedágios de Londres e Cingapura. Algumas cidades já estão aproveitando as ruas vazias para readequar o espaço público.
Paris ampliou ciclovias e subsidiou o conserto de bicicletas. Embora ache que o impacto de mudanças como o home office é superestimado, Anthony Ling, urbanista e fundador do site Caos Planejado, teme um movimento anti-cidade:
— Discursos contra o adensamento urbano já justificaram medidas urbanísticas excludentes, como a demolição dos cortiços no Rio.
+ Vamos sair dessa mais ou menos produtivos?
Consumo
Cento e treze anos após inventar a tinta para cabelo, a L’Oréal aposta agora na maquiagem para Zoom. Em abril, a marca francesa fechou parceria com a rede social Snap para transformar seus cosméticos em filtros para videoconferências. O objetivo é que, mesmo trancadas em casa, as consumidoras continuem experimentando seus produtos, ainda que virtualmente.
A nova investida da gigante de beleza na realidade aumentada mostra que distância não é uma condenação para o varejo. Após um batismo de sangue na pandemia, tecnologias de comércio eletrônico, realidade virtual, pagamentos por aproximação e até drones devem moldar as vendas num futuro de consumidores mais pobres, avessos a aglomerações e viciados em comodidade.
— A evolução digital do varejo não retrocederá. A recessão de 2008 representou apenas uma redução de vendas. Já esta crise é um rompimento de modelo — resume José Galló, presidente do Conselho de Administração da rede de lojas Renner.
O castigo já chegou para quem desdenhou desse futuro, lembra Alfredo Pinto, chefe da consultoria Bain & Co. na América do Sul.
A rede britânica Primark, amada por clientes e investidores por seus preços baixos e lucros altos, desprezou completamente as vendas on-line. Quando a pandemia fechou as lojas, o faturamento colapsou. Foi de 650 milhões de libras mensais a zero.
— O futuro será omnichannel, o consumidor escolherá onde comprar. A loja física terá que ser “a loja”, proporcionando a experiência emocional e lúdica que não existe no computador. As pessoas estarão viajando menos, então as compras terão que ser o novo lazer — acrescenta Galló.
Estabelecimentos terão que ascender à categoria de lojas-conceito para fazerem sentido, diz Ricardo Balkins, da consultoria Deloitte. Ao mesmo tempo, serão cada vez mais pontos de apoio logístico à última milha da entrega do e-commerce, acrescenta Alfredo Pinto, da Bain.
Isso trará uma cruel seleção natural, com marcas consolidadas avançando às custas de pequenos lojistas em cidades periféricas. O risco é surgirem “desertos de lojas”, com implicações urbanas.
Traumatizados pelo vírus, os consumidores vão privilegiar o menor contato possível. As lojas sem caixa da Amazon são a referência. Estudo da Nielsen Brasil prevê um futuro cada vez mais “scan & go”, com as pessoas pegando seus produtos, escaneando e pagando sem interação pessoal. Na China, já se pode comprar os carros da Geely on-line receber as chaves via drone na varanda.
Ao reconciliar os consumidores com o lar à força, o coronavírus também afetará decisões de consumo. O dinheiro mais curto tornará o consumidor extremamente sensível a preço, afirma Franz Bedacht, da Bain.
Depois de assar tantos pães de fermentação natural, a classe média deve cozinhar mais em casa. Após se reconectar com a água sanitária, fará menos sentido pagar diaristas, e mais investir em produtos de limpeza e eletrodomésticos.
— Haverá valorização do espaço pessoal. Mesmo depois da doença, as pessoas terão receio de sair e menos dinheiro —diz Domenico Tremaroli, da Nielsen.
A pandemia também converterá necessidade em comodidade nos meios de pagamentos, prevê Fernando Teles, presidente da Visa no Brasil.
Pagamentos por aproximação e uso do cartão de crédito e débito no e-commerce, potencializados pelo medo de contaminação, devem virar um hábito. Em março, o uso de cartões Visa com pagamento por aproximação no Brasil já foi cinco vezes maior do que há um ano.
Fonte: “O Globo”