Após um longo período de intensos debates e formulações sobre a necessidade de uma ampla reforma tributária no Brasil, finalmente o tema ganhou contornos mais concretos. Nesta semana, o assunto voltou à pauta da Câmara dos Deputados. Além disso, o governo federal apresentou o seu projeto de mudança para tentar simplificar o complexo sistema de cobrança e arrecadação de impostos vigente hoje no país.
Durante apresentação aos parlamentares, nesta semana, o ministro da Economia, Paulo Guedes, traçou um breve panorama do que está sendo proposto, e quais as principais mudanças analisadas. Guedes afirmou que o governo retomou a reforma, em consenso com líderes partidários e os presidentes do Legislativo, em um espírito “construtivo”, ou seja, conciliando o projeto com as Propostas de Emenda à Constituição que tramitam na Câmara Federal (focada no imposto sobre o consumo) e no Senado (mais ampla, abordando itens como o Imposto de Renda).
O ministro explicou que a extinção do PIS/Cofins, cuja ideia é substituir pela Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS), termina com 100 regimes especiais, responsáveis por tornar hostil o ambiente aos investidores. A CBS, na prática, é o Imposto sobre Valor Agregado, o IVA, adotado na maioria dos países. “O IVA foi criado em meados do século passado para cobrir uma tributação que isentasse as exportações, que fosse para o destino em vez da origem, evitando cumulatividade do sistema tributário. E houve um grande sucesso em todo o mundo”, destacou Guedes. O governo federal sugere que o IVA federal seja acoplado aos IVAs estaduais, cuja regulamentação deve ser feita em outra etapa da reforma. As duas ações permitiriam a criação do IBS, o Imposto sobre Bens e Serviços.
“A proposta conversa com a PEC 45, e, em um próximo momento, vai conversar com a PEC 110, quando iremos discutir os impostos seletivos. Temos a promessa de não aumentar impostos. O programa é de simplificação. A carga tributária será a mesma, mas vamos substituir 20 impostos por um”, garantiu Guedes, citando um exemplo de como o sistema atual é prejudicial à sociedade: há R$ 300 bilhões em desoneração (o que, na prática, significa que, quem tem poder político, consegue diminuir a carga); e outros R$ 3,5 trilhões em processos judiciais. “Essa é uma demonstração clara de como o sistema atual é perverso, regressivo, ineficiente. Tenho a certeza que o Congresso vai ajudar a reduzir, simplificar e tornar moderno e eficiente o nosso sistema tributário”, disse.
Para explicar o que significa as propostas até agora apresentadas e suas implicações, bem como as medidas necessárias para descomplicar a vida do cidadão e facilitar a retomada de investimentos, o Instituto Millenium preparou uma matéria especial com o especialista tributário Fernando Steinbruch e com o cientista político Paulo Moura, que falou das questões referentes à tramitação política das iniciativas.
As propostas: o que está em debate e o que muda para o cidadão
Fernando Steinbruch considera positivo que o debate sobre a reforma tenha, enfim, deslanchado, apesar de apontar questões que deveriam ser ajustadas. O ponto central é simplificar: se a reforma cumprir esse objetivo, será bem-vinda. “Hoje o contencioso tributário é muito grande, em função da complexidade da legislação vigente. Só para se ter uma ideia, no ano passado, a Receita Federal autuou contribuintes em R$ 190 bilhões. Se não tivéssemos uma legislação tão complexa, que gerasse tanta insegurança jurídica, talvez não tivéssemos o contencioso tributário”, disse, explicando que convém tanto para o governo quanto para o contribuinte a simplificação tributária. Ouça o podcast!
Questionado sobre uma questão cujo problema é consenso – o modelo do Imposto sobre a Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) no Brasil – o especialista do Instituto Millenium acredita que o melhor modelo é não misturar as competências nas cobranças de impostos. Na prática, isso quer dizer o seguinte: primeiro, garantir uma reforma nos tributos federais; depois, dos tributos estaduais (como o ICMS); e, depois dos municípios. Isso garantiria maior organização e simplificação ao sistema. O advogado tributarista defendeu uma unificação da legislação dos tributos estaduais, com as mesmas alíquotas. “Com isso nós teríamos uma simplificação significativa e não correríamos o risco de Estados e municípios perderem a arrecadação, que é o que pode acontecer dependendo da proposta a ser votada”, afirmou.
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Steinbruch alertou, no entanto, para um ponto importante: a sociedade não pode aceitar um aumento da carga tributária. “O que é preciso fazer é identificar os setores que têm possibilidade de contribuir mais. A capacidade contributiva do cidadão brasileiro exauriu. Não há como aceitar isso, porque o contribuinte brasileiro vai continuar cada vez mais endividado com o Fisco sem ter capacidade de honrar esses compromissos. Vamos criar devedores inadimplentes eternos se houver esse aumento da carga de impostos”, disse, lembrando ainda que a redução da cobrança dos tributos poderá forçar inclusive a retomada da economia, tão necessária após a superação da pandemia do novo Coronavírus.
Os desafios para a aprovação no Congresso
A tramitação de uma proposta complexa, que envolve vários e difusos interesses como a reforma tributária, depende não apenas de um bom projeto técnico, mas também de muita articulação e negociação entre todos os atores envolvidos nesta questão. Em entrevista ao Instituto Millenium, o cientista político Paulo Moura explicou como isso funciona na prática, e abordou o caminho das pedras para que uma proposta passe pelo Congresso Nacional e seja, enfim, efetivada. Saiba mais!
Paulo Moura destacou que a proposta apresentada pelo governo deve ser modificada tanto na Câmara quanto no Senado, por questões políticas. Além disso, há também os conceitos por trás das propostas de reforma, que merecem ser olhados com atenção. “O conceito por trás da PEC 45, elaborada na época dos governos petistas, tem um contexto redistributivista. Existe a ideia que o sistema tributário tem a função de redistribuir renda, que é um conceito de esquerda. Uma ideia liberal foca a redução da carga tributária, do custo fiscal, olhando para a produtividade das empresas e para a redução do Custo Brasil, bem como a melhoria da competitividade do país no exterior. Esses conceitos são subjacentes às propostas e há uma colisão entre as medidas. Por isso, a equação é complexa e imprevisível”, disse Moura.
A ideia segundo a qual o Congresso pode alterar a proposta apresentada pelo governo encontra paralelo na votação da Reforma da Previdência, quando isso também aconteceu. “É possível que o resultado final venha a ser uma combinação entre as propostas do governo, Câmara e Senado. Eventualmente, há outras propostas de deputados, e o resultado desse processo costuma ser uma negociação no Parlamento que combina as ideias”, disse. A conciliação entre as três iniciativas, que são divergentes em alguns pontos, é algo complexo, na visão de Moura. De acordo com o mestre em Ciência Política pela UFRGS, a ideia da proposta da União foi deixar a porta aberta para que o Congresso pudesse incluir as suas iniciativas. “O governo avaliou que deixando os Estados de fora e colocando apenas os tributos federais, a porta seria aberta para que o Congresso, em combinação com os governadores, incluísse o IVA dos Estados, além do federal”, pontuou.
Moura destacou que a reforma tributária sempre foi inviabilizada por definir quem paga a conta. O cientista social reforçou que é difícil reduzir a carga tributária pelo déficit fiscal e o alto custo da máquina pública, o que só poderia ser resolvido com uma reforma administrativa. Portanto, é preciso redistribuir os chamados “fatos geradores” – a operação geradora que gera o tributo. “E aí a divergência é enorme. A proposta do governo, por exemplo, gerou reações do setor de serviços. O comércio é favorável ao imposto sobre transações financeiras, pois em princípio iria desonerar o setor dos impostos que incidem sobre operações comerciais; mas a indústria não gosta desse tipo de imposto, afirmando que incide em todas as etapas do processo produtivo, agregando o custo do imposto em cada transação que ocorre. Isso torna o consenso muito difícil”, disse, lembrando, entretanto, que há uma real intenção de se modificar as regras.
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Sobre os pontos que deverão gerar maior conflito, Moura destacou a possível criação de um Imposto sobre Transações Eletrônicas. O tributo, que foi comparado à CPMF, sofreu grande rejeição por parte da sociedade e pelo presidente da Câmara, deputado Rodrigo Maia (DEM-RJ), que descartou a hipótese de aprovação, pelo Parlamento, de uma proposta neste sentido. “Ele tem sido muito enfático em dizer que isso não passa. A dúvida é até que ponto teremos o peso do setor de serviços em oposição à oneração maior que o governo está propondo com a simplificação do PIS/Cofins. É de se esperar que, ao longo da tramitação, eles coloquem o seu lobby pra cima do Congresso. O aparente consenso é no sentido de simplificação dos impostos, o que já é uma grande conquista. As empresas brasileiras são as que mais despendem horas no mundo para equacionar uma solução para o ‘manicômio tributário’. Há 27 modelos de ICMS, cada Estado tem matriz tributária própria; mais os impostos municipais. É um caso único no mundo, de uma confusão tão grande”, disse.