Eu, um menino de 9 anos, quando papai, fiscal do consumo, foi transferido de Maceió para Belo Horizonte. Corria o ano de 1945 e, graças à paixão de papai pelos exercícios físicos, fomos – meus quatro irmãos e eu – apresentados ao mundo da ginástica e da natação. Morávamos em frente do Minas Tênis Clube e, apesar dos meus 9 anos, guardo uma lembrança nítida dessa experiência. Não tive medo da água porque Niterói, com sua Praia das Flechas de águas transparentes, já me havia ensinado a nadar, mas entrei em pânico quando os instrutores de ginástica nos ensinaram a dar cambalhotas abraçando as pernas. Um treino fundamental para aprendermos a realizar o “salto de peixe” impulsionados por um pequeno trampolim acompanhado de uma cambalhota que, na verdade, era um meio salto mortal.
A expressão “salto mortal” até hoje me assusta, mas naqueles tempos simbolizava o desafio a ser vencido com o encorajamento do pai que, risinho, forte e bonito, nos levava a “ser bons atletas” como ele fora durante toda a sua vida. Treinávamos o “salto mortal” (se cair de mau jeito, como temos testemunhado no mundo político, viciado em mortais, pode-se “quebrar a espinha”) com cintos e cordas na cintura com dois instrutores nos apoiando e encorajando. Passei uma noite sem dormir, mas consegui, numa manhã de radiante luz, quando menino, desafiar a morte no meu primeiro mortal.
Fomos premiados com sorvetes. Recompensa suprema recebida quando arrancávamos dentes…
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A eleição em democracias é, como apontava Tocqueville, equivalente a uma passagem dramática – um salto mortal; tanto quanto o audaz primeiro beijo, até chegar aos exames orais e, no meu caso, à primeira aula do professor noviço, nervoso com suas fichas e com um medo danado de não ter o que dizer. A isso só se compararam, tempos depois, as primeiras visitas ao tal “estrangeiro” para estudo, aulas, cursos e conferências.
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Hoje, com muitos saltos realizados por obrigação e circunstância, penso no maior salto mortal de minha vida, quando decidi pela profissão de “estudar sociedades tribais”. Não essas tribos de Ipanema, Leblon e Itacoatiara, onde surfistas realizam as manobras mágicas que admiro e invejo; mas aquelas da pesquisa entre os que chamamos de “índios”. Esse conjunto de povos sem escuta, forçados, pela opressão do nosso sistema, a enfiar numa mesma gaveta línguas, rituais, direitos e costumes diversos do nosso.
Aos 20 e pouco anos, a partir de 1960, dei esse salto mortal quando comecei esse aprendizado. O que o movia? – pergunta o velho que sou ao jovem tímido, disposto a viver com essas sociedades satisfeitas consigo mesmas. Sistemas nos quais os objetos mecânicos consistem no tipiti, no marcará da música e no arco e flecha das sobrevivências? Como é que fez essa escolha de viver sem sequer ter sido convidado por essas humanidades incrustadas na mata amazônica ou no grande cerrado do Brasil Central, hoje possuído pelo “agro” que é tudo?
Quando cheguei à primeira aldeia indígena, em 1961, e lá fiquei estoicamente por quatro meses, testemunhei vários saltos mortais. O meu era voluntário, mas o mortal dos gaviões e dos apinajés era obrigatório. Era saltar ou morrer.
Todos sabemos que cada qual salta e morre como pode. Mas se o alvo é um Brasil diferenciado, mas ciente das suas diversidades, é preciso insistir para os riscos quando se salta de um sistema a outro. Saltos são inevitáveis, mas é preciso ensiná-los. Com humanidade e sem as lentes da ignorância – a marca dos fortes e dos arrogantes.
A questão é universal: como saltar para cair elegantemente em pé, como foi o meu caso quando menino, e como promover isso no salto forçado de grupos tribais, que têm pulado para descobrir que suas terras não mais lhes pertenciam? Agora, são de uma poderosa entidade chamada “governo”?
O que vi e vivi com meus mestres e irmãos de jornada; e com a minha família – pois fui daqueles pioneiros que, quando comuniquei e aos meus superiores que ia viajar com mulher e filhos, causei o espanto dos malucos – foi o salto mortal dos “índios”. Eu testemunhei a generosidade no limite da extinção e do genocídio.
Vale lembrar que naqueles anos de golpes, censura e repressão eram tempos de grandes saltos. Como ocorre hoje, discutimos os saltos do Brasil, mas continuamos esquecidos dos pulos dessas sociedades humildes que o acaso histórico entregou ao nosso poder.
Se é dramático reformar um sistema por ele mesmo, como é o nosso caso; imagine o que se passa quando “estrangeiros” agentes de mudança chegam mais para mandar, oprimir e destruir do que para garantir um nobre e justo futuro. Um salto mortal, sem dúvida, mas sem a preocupação com a queda.
Fonte: “O Globo”, 23/01/2019