Outro dia, li uma nota levemente crítica ao ministro Ernesto Araújo, das Relações Exteriores. Ele escrevera um artigo afirmando que Deus estava na diplomacia, na política, em todos os lugares.
Embora não seja propriamente um teólogo, considero bastante previsível a crença na onipresença divina. Algumas religiões estendem o dom da ubiquidade a todos os espíritos. Para dizer a verdade, alguns deuses, como o hindu Shiva, têm poderes muito mais ecléticos: dança, destrói, faz um carnaval.
Não temos o dom divino da onipresença porque somos humanos e não toleraríamos a presença na vastidão. No meu caso, dispensaria Bruxelas sob chuva e as noites de Codó, no Maranhão.
O que me intriga no pensamento do ministro Araújo é sua crença na salvação do Ocidente, liderado por Donald Trump. Essa história de salvação, creio que surgiu, pela primeira vez, com Zoroastro, perpassou o cristianismo, reaparece na religião laica que é o marxismo e sobrevive em alguns setores da ecologia que acreditam poder salvar o planeta.
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Se a salvação para mim é um conceito duvidoso, o que diria do salvador? De que podemos ser salvos por alguém como Trump, que diz às crianças que Papai Noel não existe e contrata advogados para silenciar mulheres com quem transou?
Se pelo menos Trump usasse o que se diz sempre — errar é humano, a carne é fraca, atire a primeira pedra —, os valores ocidentais estariam em melhores mãos. O problema central é a relação com os Estados Unidos. Ela precisa de equilíbrio, e há quem trabalhe nesse tema desde o século passado.
Afonso Arinos, em 1952, quando ainda esboçava suas ideias sobre uma política externa independente, defendeu o Acordo Militar Brasil-EUA. O governo Vargas queria isso, mas não teve coragem de dar as caras. Resultado, Arinos apanhou sozinho da esquerda.
Acontece que no acordo havia um só tópico que não interessava ao Brasil. Arinos ofereceu uma fórmula diplomática para contornar a dificuldade. Apanhou da direita.
Mesmo nos primórdios do que mais tarde seria uma política externa independente, a proximidade com os Estados Unidos representava um fato decisivo. Mas também era bastante claro que a proximidade não significava uma adesão acrítica a todas as propostas americanas.
No momento, esta questão vai aparecer com muita delicadeza, entre outras, nas relações com a China. Trump espera apoio na sua guerra comercial. Mas tem negociado intensamente com Xi Jiping.
Não está muito claro o papel que teremos nesse triângulo. Por enquanto, estamos ainda em discussões teológicas, ave-maria em tupi, José de Alencar e arroubos nacionalistas.
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Tudo isso, para mim, anima um pouco o morno universo político brasileiro. Mas existem algumas contradições. Um forte tom nacionalista quando se trata de organismo multilateral. Uma duvidosa escolha do salvador, quando se trata das ameaças ao Ocidente.
Não imagino que o olhar severo do ministro Araújo esteja voltado contra os jogadores de I Ching ou leitores do Tao. Ele se preocupa com o marxismo chinês, com os grupos islâmicos, com a desaparição de traços culturais do país num mundo globalizado.
Mas é um exagero supor que nossa política externa seja uma medíocre omissão baseada em interesses comerciais. O desejo de defender a paz e solução negociada para os conflitos é um dado da cultura brasileira.
No século passado, o Peru inaugurou uma avenida com o nome de Afrânio Mello Franco, pai de Afonso Arinos. Os peruanos acham que o velho contribuiu para evitar uma guerra com a Colômbia.
Se isso não basta, lancemos um olhar para o próprio governo Bolsonaro. Dois dos seus ministros são generais destacados na manutenção da paz no mundo: Augusto Heleno, no Haiti; Carlos Alberto dos Santos Cruz, no Congo.
O Brasil não é uma invenção intelectual. A política externa do PT foi um desvio voluntarista. Ao delírio da esquerda, não se pode responder com o delírio da direita.
Política externa é fruto de um consenso nacional. Não adianta forçar a barra. Sofremos com isso, e o preço político que os vencedores do momento pagarão é bem maior que os equívocos domésticos, num país em que nem todos os meninos se vestem de azul, nem todas as meninas de rosa.
Fonte: “O Globo”, 07/01/2018