É verdade que chuvas intensas —eventos extremos — tornaram-se mais comuns nas últimas décadas. Logo, há uma mudança climática. Mas isso não pode ser tomado pelos administradores públicos como justificativa ou desculpa mesmo. Há também uma crise fiscal e, certamente, de planejamento.
Números: levantamento da Globo News mostrou que na última década as diversas administrações estaduais paulistas colocaram no orçamento verbas no total de R$ de 6,2 bilhões para ações de prevenção e combate às enchentes. E quanto foi efetivamente aplicado? R$ 3,6 bilhões.
São valores nominais, mas dá bem uma ideia do que aconteceu. No início da década, o gasto acompanhou de perto o que estava orçado. Depois, ficou expressivamente menor.
Trata-se do momento em que se agravou a crise fiscal ou crise das contas públicas, que pode ser assim resumida: aumentam, em todos os estados e municípios, os gastos com salários do funcionalismo e com aposentadorias e pensões, comprimindo as demais despesas, a começar pelos investimentos.
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É o que sempre acontece quando as contas apertam. Atrasar pagamento de salários e aposentadorias é um desastre político. Parar, atrasar ou suspender o início de uma obra é fácil. Tem um custo político limitado e sempre pode ser amenizado com promessas.
No governo federal, as despesas com previdência e salários passam de 75% do total de gastos. Em governos estaduais, os percentuais variam e muitos estão abaixo do nível federal. Mas o problema é essencialmente o mesmo.
Consideram o governo paulista, que tem mais equilíbrio fiscal que a maioria dos outros estados. No orçamento aprovado para este ano, estão reservados R$ 124 bilhões para pessoal e mais R$ 39,8 bilhões para aposentadorias e pensões. E sabem qual a verba de investimentos? Míseros R$ 10 bilhões, para tudo de infraestrutura, incluindo obras de controle das enchentes. Claro que não vai dar.
Sim, prefeituras também vão investir nisso, mas a situação fiscal é parecida para todos. Dados do Tesouro Nacional, elaborados pelo economista Alexandre Schwartsman, mostram que de 2017 para cá as despesas municipais aumentaram mais de R$ 40 bilhões acima da inflação. E cerca de 2/3 desse dinheiro foram para pagamento de salários e aposentadorias.
Mais importante ainda: não houve falta de receita. De 2013 para cá, as receitas dos municípios tiveram um ganho real equivalente a 1% do PIB.
Lógico, portanto: o problema está no gasto e na falta de planejamento. Tem sido raro encontrar um prefeito como Jaime Lerner foi para Curitiba. Ele exerceu três mandatos, somando 13 anos na administração da cidade. Teve tempo, portanto. Em cima disso, talento e capacidade de planejador e zelador.
Aliás, por isso é difícil ser prefeito, especialmente das grandes cidades. É preciso ser político —para ganhar as eleições, né? —planejador de longo prazo e zelador, ou seja, prestar atenção nas placas de ruas, no lixo, na varrição das ruas, na eficiência dos semáforos, no asfalto e …. nos pontos de enchentes.
(Aliás, ganha um prêmio quem encontrar uma placa de rua decente na cidade de São Paulo).
Em vez disso, a prefeitura é quase sempre um degrau para outros postos políticos, de governador a deputado federal ou senador. Nessa condição, o sujeito se preocupa em fazer duas ou três coisas com visibilidade e, pronto, vai às urnas de novo.
Esse o problema: há uma mudança climática em curso mas não há uma mudança na qualidade da política. Este é um ano de eleições municipais, os candidatos começam a se apresentar.
Repararam nos debates e nos supostos critérios de seleção? Petistas x bolsonaristas; aspirantes a tomar do PT um lugar à esquerda; aspirantes a tomar de Bolsonaro o posto de antipetismo; aspirantes variados ao centro; e assim vai.
Sim, política é importante. Conforme o lado, a administração privilegia este ou aquele setor da cidade. Mas, convenhamos, todos terão que lidar com lixo, bueiros, limpeza de rua, iluminação, placas e semáforos. Onde estão os zeladores?
E, sobretudo, onde estão os administradores que vão fazer as reformas da Previdência e do funcionalismo, sem as quais não haverá dinheiro para mais nada?
Fonte: “O Globo”, 13/2/2020