Seria mentira dizer que eu fui um adepto de “piqueniques”, esse francesismo para “pic-nic” — ritual de comer com amigos a céu aberto que nasceu quando surgiu a dualidade entre o campo e a cidade. Sua aparição do Oxford English Dictionary data de 1746.
Fiz uns dois piqueniques em Juiz de Fora, e tenho a memória viva de um outro piquenique num jardim de Petrópolis. Lembro-me das cobertas de lã a nos separar da grama, da cesta com sanduíches, dos sucos de frutas e do meu desconforto em comer sem a velha e indispensável mesa.
Fiz, contudo, muitos piqueniques nos Estados Unidos. Focalizo o primeiro, porque foi o que me ensinou uma lição fundamental, ausente no nosso sistema. Refiro-me à assustadora regra segundo qual você é responsável pelo seu lixo.
Nesse piquenique, comi e bebi, mas o que sobrou e que eu, sem pensar, estava prestes a “jogar fora” (eis um brasileirismo revelador porque ninguém “joga dentro”) foi ensacado e levado para lixeiras. A experiência americana da responsabilidade pelo próprio lixo freou, como ocorre em todo contato cultural profundo, o meu fazer sem pensar e revelou o sentimento da diferença e de uma alternativa numa conduta que, aos meus olhos, era definitiva, pois eu não aprendi que o lixo deveria ser cuidado pelos que o produziram, um empregado fazia isso por mim. Cuidar do meu lixo foi o paradigma moral que me ensinaram e que funcionava nos Estados Unidos.
A partir daquele evento aprendi que, além de ser responsável por mim mesmo e pelos papéis sociais que desempenho, sou igualmente responsável pelo lixo que produzo. Sobretudo quando estou num espaço público, o qual, por pertencer a todos, não pode ser apenas do “governo”, do “gerente”, da “empregada” ou do “gari”.
Descobri que estava numa terra na qual havia individualismo, mas que ele se ligava a um inesperado igualitarismo no uso do espaço público. Não havia garis ou empregados locais nos parques onde fazíamos piqueniques, e assim eu tive que aprender a cuidar do meu lixo, ao lado do aprender a tomar partido, a concordar discordando e que a honestidade era a melhor política, um preceito duro de aceitar.
Essas trivialidades aos olhos dos economistas e dos politicólogos foram alguns dos americanismos que me obrigaram a tomar consciência de que minha vida era obviamente minha, mas que eu convivia “com” e não “contra” os outros, como era o caso da prática brasileira. Tocqueville percebeu coisas do mesmo teor e foi provavelmente o maior teórico da democracia, mas quem lê esse reacionário no Brasil?
A grande diferença americana na Nova Inglaterra (onde eu vivi) era a ausência de aristocracia e do escravismo como um estilo de vida prescritivo e dominante. Eles tinham segregação, mas limpavam o seu lixo. Nada de empregados, garis e o “você sabe com quem está falando?”, esses brasileirismos. Essas almas penadas sociológicas da escravidão negra, da servidão e da subserviência como valor. Algo que, como uma língua, aprendia-se ao nascer e se falava sem pensar.
Joaquim Nabuco percebeu que “a escravidão permanecerá por muito tempo como a característica nacional do Brasil”. Realmente, até hoje, somos fabricados por uma cultura do servir e ser servido. Faz parte de nossa formação um conjunto de relacionamentos hierárquicos onde as partes sempre se definem relativamente umas às outras. Todos nós servimos aos nossos patrões com a mesma intensidade com a qual somos servidos pelos nossos empregados. A estrutura resultante é determinada pela simultaneidade paradoxal e dilemática, nos torna simultaneamente patrões e clientes, dependendo da situação. Em casa, mandamos; na rua, temos (eis o problema) que obedecer. Falta o olhar horizontal igualitário que hoje demanda seu lugar numa apertada vida pública nacional.
Depois de um carnaval realizado na rua, assistimos um tanto apalermados à revolta dos garis. Não é igual à dos alfaiates, mas ela nos leva diretamente a regra fundamental da vida igualitária: você é responsável pelo seu sucesso e pelo seu lixo! Leva-nos também a repensar no retorno do brasileirismo do “jogar fora” sem pensar porque um empregado põe no lixo. A igualdade, a democracia e um terrível igualitarismo estão acabando com esses humildes empregados e escravos que jogavam nosso lixo fora.
A festa do luxo produz um imenso e vergonhoso lixo, e a culpa é precisamente a ausência dos lixeiros. Onde estão? Como é que eles pedem aumento e querem ser como nós?
Sumiram os garis (anglicismo que vem de Gary, nome do gerente de uma empresa encarregada da limpeza urbana), mas o lixo, esse resultado do luxo, aumenta substancialmente. O próprio prefeito do Rio de Janeiro, a quem eu empresto a minha humilde solidariedade porque as suas tarefas são dignas de um super-herói, joga fora sem pensar um resto de fruta e faz questão de ser multado. Outro dia, um amigo foi penalizado por algo jamais imaginado na cultura escravocrata que vive em nós: ele jogou fora o resto de cigarro e foi imediatamente multado. Pego em flagrante delito, reclamou. Menos pela multa, mais pelo absurdo de não termos até hoje enfrentado essa divisão que faz com que em casa sejamos exemplarmente limpos; e, na rua, inscientes absolutos para com o lixo produzido pelo nosso luxo.
Como viver com expectativas escravocratas numa sociedade que também é democrática e igualitária? Aquele que é senhor não pode ser livre, advertira um Rousseau que muita gente pensa que é nome de perfume. Como ficamos nesse Brasil de garis e de sinhorzinhos-cidadãos prontos para sujar o mundo?
Fonte: O Globo, 12/03/2014
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