Vamos imaginar que as contas públicas no Brasil estivessem no azul. O governo federal e os estaduais com superávit, caixa elevado e fundos instituídos para ações anticíclicas — ou seja, governos com dinheiro para gastar em caso de uma crise, uma recessão global ou uma emergência como o coronavírus. Seria muito mais fácil, não é mesmo? A questão seria apenas escolher onde gastar e quais programas implementar.
A situação real é o contrário disso. Como há uma dívida pública enorme, e como todas as instâncias de governo operam no vermelho, passamos a ter dois problemas: primeiro, onde encontrar o dinheiro para gastar na crise; e, depois, onde gastar — mas gastar com parcimônia e extremo cuidado porque não vai ter para todos.
Dizem alguns: mas a opção liberal/ortodoxa não seria a de não gastar nada, em nome do ajuste fiscal?
Burrice. Essa opção nunca significou que o governo não deve gastar. E sim que deve gastar em saúde, educação e segurança, de um modo que leve a uma redistribuição de renda e redução de desigualdades. Ou ainda: cobrar mais impostos dos mais ricos e gastar com os mais pobres.
O desajuste fiscal brasileiro não decorre essencialmente do excesso de gasto público. Decorre de gasto ruim.
Se o governo não gastasse quase 80% da despesa com Previdência e pessoal, já teria sobrado mais dinheiro para a saúde. Tem mais: a Previdência brasileira é injusta e desigual. Tem a turma que se aposenta aos 50 anos, com valores no teto (e no extrateto no caso de funcionários públicos) e a imensa maioria que se aposenta aos 65 anos com vencimentos em torno do salário mínimo. E mesmo dentro do setor público há desigualdade: um funcionário do Judiciário, onde estão os maiores salários do país, se aposenta em condição muito melhor do que, por exemplo, bom exemplo, um enfermeiro de posto de saúde.
É evidente que a correção desse rumo não se faz de uma hora para outra, muito menos no meio de uma calamidade mundial.
Mas também é um baita erro dizer que, como se vai gastar mesmo, então esqueçamos isso de ajuste fiscal ou teto de gastos. É esse tipo de cabeça que nos trouxe ao ponto em que estamos hoje.
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Assim, de modo muito simples: o governo, em todos os níveis, tem que caçar centavos para gastar no combate à epidemia e no combate à recessão que se avizinha. Por isso, o decreto de calamidade pública faz todo o sentido e está previsto na legislação. Há momentos em que se pode suspender a meta fiscal — mas, notem, suspender por tempo determinado, não a abandonar.
E o gasto tem que ser muito bem focado, porque o dinheiro é curto e vai gerar déficit, que terá de ser pago mais à frente.
O gasto principal, claro, é saúde: cuidar dos doentes e tentar controlar a epidemia. Cabe perfeitamente aqui — e é mesmo necessário —dar remuneração extra aos profissionais do setor que, no geral, são mal remunerados.
E depois, gastar com as pessoas em situação mais difícil, aquelas, por exemplo, que não estão no Bolsa Família, mas também não estão no INSS, não têm seguro-desemprego e não têm carteira assinada.
Finalmente, setores econômicos cuja queda pode gerar muito desemprego.
Não há nenhuma dúvida quanto a esse roteiro no mundo todo. Os governos estão fazendo coisa parecida.
A diferença está na eficiência e no tempo dos programas governamentais. A Coreia do Sul, por exemplo, foi rápida e eficaz. Já o governo italiano bobeou, assim como o da França. Ainda no começo deste mês, o presidente Macron dizia algo assim: tomem cuidado, mas não deixem de sair, de comer nos seus lugares preferidos …. Agora, quarentena total. Quanto mais se atrasa, mais radical é preciso ser.
Trump também tentou levar na surdina. Assustou-se com os estudos médicos mostrando o tamanho da catástrofe. Diz agora que se trata da maior ameaça deste a Segunda Guerra.
O governo brasileiro também se atrasou, por culpa do presidente Bolsonaro. Presidente que ainda ontem, estando de máscara na entrevista, disse que poderia pegar um metrô ou uma barcaça lotada para ficar ao lado do povo. Isso quando todas as autoridades sanitárias dizem o contrário — que é preciso esvaziar as ruas e ficar em casa.
Ainda bem que governadores estaduais têm se mostrado mais conscientes do tamanho da crise.
Fonte: “O Globo”, 19/3/2020