Thomas Jefferson, o terceiro presidente dos Estados Unidos (1801-1809), ao longo de sua carreira política era vítima constante de ataques da imprensa. Nem por isso deixou de produzir a lição: “Um governo que não consegue se manter contra as críticas existentes merece cair.” Arrematava o pensamento dizendo que o homem pode ser governado pela razão e pela verdade, sendo a liberdade de imprensa o mais efetivo instrumento para descobri-la.
Esta lembrança tem que ver com o panorama sombrio exposto dias atrás, em Brasília, por ocasião da 5.ª Conferência Legislativa sobre Liberdade de Imprensa. Jefferson também dizia que a América Latina não tinha a tradição anglo-saxônica de liberdades. Acertou na mosca. No evento promovido pela Câmara dos Deputados, Honduras, Bolívia, Venezuela, Argentina, Equador, México e também o Brasil saíram mal na radiografia sobre governos interessados em limitar a autonomia de jornalistas e empresas de comunicação. Por que a sombra autoritária paira sobre o continente, quando o clamor pelas liberdades se torna cada vez mais elevado em todos os quadrantes do planeta?
Uma pista pode estar na fala de Simón Bolívar, que há 200 anos lamentava o fato de não haver boa-fé na América, “onde as Constituições não passam de livros e a liberdade é anarquia”. O timoneiro só não podia adivinhar que sua expressão seria seguida à risca por um coronel que se gaba de ser o mais legítimo continuador da “revolução bolivariana”: Hugo Chávez, o mandachuva da Venezuela. Maior ícone do autoritarismo na região, Chávez estraçalha as leis, domina os Poderes Legislativo e Judiciário e, no que diz respeito aos meios de comunicação, instala no país gigantesca mordaça sob o veredicto de que “opinar é um delito”. As intermitentes ameaças que pairam sobre a mídia têm como fundamento a hipótese levantada por Oscar Vilhena Vieira, professor de Direito da FGV, apresentada no último domingo neste jornal, de que “a democracia constitucional, na visão dos governantes com viés autoritário, é um obstáculo ao enfrentamento dos problemas da região”. Sob essa vertente, o sistema de freios e contrapesos deixa de funcionar, eis que um modelo hiperpresidencialista passa a dominar a fisionomia institucional.
Ante esse cenário, torna-se inevitável perguntar: os governantes guardam noção sobre o papel da imprensa para a consolidação da democracia? Será que compreendem que a democracia tem fundamento político e ético no direito de livre acesso à informação? É pouco provável. Creem que a mídia deve ser tuba de ressonância de seus governos. A bem da verdade, nas últimas décadas a imprensa foi desfigurada por perfis que habitam o Olimpo da cultura de massa, dando vazão a um repertório de insignificâncias, como atesta Carl Bernstein, que, ao lado de Bob Woodward, ajudou a derrubar, com sua investigação, o presidente Nixon. Nem por isso, porém, o sistema de comunicação deve ser extensão dos governos. Com o carisma em estado de escassez, parcela ponderável das lideranças regionais se esforça para esticar braços assistencialistas em direção às massas, removendo obstáculos que as impedem de alcançar suas metas, entre eles, a crítica midiática. Para tanto usam controles legais e políticos (leis e censura), econômicos (limitações à propriedade de uns e apoio com verbas a outros) ou sociais (rede de entidades sob seu domínio).
No nosso meio, chama a atenção o fato de que, quanto mais se expandem as redes sociais em torno da comunicação global – com milhões de brasileiros interconectados na internet -, mais se cultiva um pensamento retrógrado, centrado no controle da informação. Qual a explicação para que um jornal brasileiro, com longa trajetória de lutas em defesa das liberdades, desempenhando seu mister sob a égide de instituições republicanas, continue há 282 dias sob censura? O vice-presidente do STF, ministro Carlos Ayres Britto, no evento em Brasília, abriu uma fresta. O País atravessa um ciclo de transição, caracterizado pela passagem de uma cultura restritiva, de repressão, de desconfiança, “para uma cultura de plenitude de liberdade de imprensa”. Sob esse precário abrigo, magistrados, principalmente os de primeira instância, margeando o terreno da perplexidade, tendem a cair no desvão do “negaceio”, optando por uma linha dúbia. Vejam o paradoxo: em plena era de luzes e transparência, a escuridão cai sobre os olhos de parcela de nossos juízes.
Afinal de contas, a proibição feita a este jornal, para impedir informações a respeito da Operação Boi Barrica, não solapa o direito da sociedade de conhecer fatos relevantes sobre as teias do poder? O próprio ministro Britto lembra que a liberdade de expressão e a liberdade de imprensa têm preferência sobre outros direitos, incluindo os ligados à privacidade. Daí não caber à Justiça nem ao Estado decisão na esfera da censura prévia. Não poderia ser esse o facho a iluminar a consciência jurídica? Sem dúvida. Acontece que a cultura autoritária teima em desdobrar seus tentáculos por todos os espaços da vida institucional.
A conclusão é que o Brasil é um cabo de guerra em que dois grupos tentam vencer a disputa. Um batalhão puxa o cabo em direção ao futuro, enquanto o outro luta para segurar os eixos do passado. O primeiro é composto por cidadãos que cultivam a liberdade em todos os campos. E que desfraldam a bandeira do progresso material e espiritual. Esta é a Nação dos sonhos comuns e dos anseios coletivos. A outra banda é a do antigo território, que abriga o vetusto Estado autoritário e onde atores arcaicos encontram dificuldades de contracenar com os personagens do século 21. Isso explica o oceano de distância entre o que a sociedade deseja e o que lhe falta.
Eis o dilema: o Brasil tem sede de futuro, mas fome do passado.
(“O Estado de S. Paulo”, 09/05/2010)
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