O Brasil não tem um, mas dois mercados de crédito. É o que mostram as estatísticas do Banco Central, que vêm separadas em créditos direcionados e livres. O dinheiro de um não flui para o outro, de forma que eles operam com taxas de juros e prazos bem diferentes.
Essa segmentação é tão antiga que às vezes parece imutável. Mas não é de graça. Sua sustentação depende de elevados subsídios públicos e do confisco da poupança dos trabalhadores. E esse custo vem aumentando, com a forte expansão do volume de crédito direcionado nos últimos sete anos. Em abril de 2007, o saldo de crédito direcionado correspondia a 11,1% do PIB; sete anos depois, somava 25,7% do PIB. Ou seja, ele mais do que dobrou como proporção do PIB.
De início, essa expansão se deu em paralelo à queda da Selic, o que mitigou seu custo para os poupadores e o fisco, que se remuneram com base na TR+3% (FGTS) e +6% (poupança) e na TJLP (FAT e Tesouro). Assim, a TR, a TJLP e a Selic, que em abril de 2007 estavam em 1,5%, 6,5% e 12,7%, haviam caído em abril de 2013 para 0,0%, 5,0% e 7,4%, respectivamente. Ocorre, porém, que um ano depois a Selic já subira para 11%, enquanto a TJLP ficou em 5% e a TR em 0,6%.
Portanto, a diferença entre a Selic e as taxas reguladas subiu tremendamente no último ano. Isso fez com que a remuneração do FGTS nos últimos 12 meses tenha sido de apenas 3,5%, bem menos que a inflação (6,3%) e a Selic (9,4%). De fato, o cotista do FGTS sequer consegue tirar de volta o que colocou no Fundo em termos reais, um confisco que aumentou no governo da presidente Dilma (ver www.bit.ly/1ptGjzL).
O custo fiscal dos subsídios creditícios também cresceu. Entre empréstimos aos bancos públicos e outros créditos, o Tesouro tem o equivalente a 16,6% do PIB em ativos que rendem a TJLP. Como o governo é deficitário e tem uma dívida líquida com o setor privado, o custo de oportunidade desses recursos pode ser aproximado pela Selic. Isso significa que em 2014 o Tesouro vai gastar 1% do PIB (6% x 16,6% do PIB) para viabilizar esses subsídios. Se a TJLP subisse para 8% – ainda abaixo, portanto, da Selic -, o Tesouro economizaria 0,5% do PIB ao ano.
A forte expansão do crédito direcionado também diminuiu a potência da política monetária. Isso porque as taxas de juros desses empréstimos não respondem às variações da Selic. Pegue-se, por exemplo, o ciclo de aperto iniciado em abril de 2013. Entre março de 2013 e março de 2014, a Selic subiu 3,75 pontos percentuais (p.p.). No mesmo período, a taxa de juros nos empréstimos do BNDES variou zero, no crédito agrícola caiu 0,2 p.p. e nos empréstimos imobiliários subiu 1,8 p.p. No todo, os juros em créditos direcionados aumentaram 0,7 p.p., enquanto nos créditos livres a alta foi de 5,7 p. p.
Isso ajuda a entender porque os juros são tão altos no Brasil. O crédito direcionado faz com que o canal do crédito funcione como um cano semi-entupido. Como a água só passa em metade do cano, para sair a mesma quantidade de água do outro lado é preciso colocar muito mais pressão na entrada. É isso que ocorre no Brasil: como o Banco Central só afeta 54% dos créditos, ele precisa subir mais os juros para ter o mesmo efeito sobre a inflação. Basta ver que a alta média dos juros no último ciclo de aperto (2,6 p.p.) ainda está abaixo do aumento da Selic.
Outro problema é que há duas categorias de tomadores de empréstimos no Brasil. Quem pega crédito direcionado paga juros reais de 1,6%, com prazo médio de 12 anos e meio. Quem tem acesso ao BNDES paga ainda menos: apenas 1,1%. Já quem pega um crédito livre paga juros reais de 23,9%, com prazo médio de três anos.
Por fim, falta transparência. Independentemente da validade do subsídio dado em cada empréstimo, o fato de que a sociedade não tem informações sobre quem recebe esse benefício e para quê, nem pode avaliá-lo de forma independente, é um problema. O valor dos subsídios creditícios hoje rivaliza com o total de investimento do governo federal, que é objeto de acirradas disputas no Congresso. Por que os subsídios creditícios não passam pelo mesmo escrutínio?
Elevar as taxas de juros reguladas não vai ser indolor, política ou economicamente. Quem hoje toma empréstimos de prazo longo com juros de 1% ao ano mais inflação, bem menos do que paga o Tesouro Nacional, não vai abrir mão do benefício com facilidade. Some-se a isso que diversas concessões realizadas no último par de anos só se viabilizaram por conta desses juros reais tão baixos. Aumentá-los vai exigir rever o equilíbrio econômico-financeiro da concessão.
Em suma, é hora de começar a deixar para trás a custosa segmentação do mercado de crédito brasileiro. Sem isso, a despesa com juros vai continuar a subir e a pressionar o déficit nominal e a dívida pública, ajudando a colocar em risco o grau de investimento do Brasil. Além disso, o confisco da poupança dos trabalhadores é injusto e deve parar. E subsídio público só deve ser dado com transparência.
Fonte: Valor Econômico, 06/06/2014.
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