Na década de 1970, o antropólogo Peter Fry escreveu um artigo tentando responder por que a feijoada era um típico prato nacional no Brasil, mas um prato de negro nos Estados Unidos. Sob a influência marxista da época, que enxergava a sociedade como dividida em dois atores coletivos, os poderosos brancos e os fracos negros, sua conclusão era que “a conversão de símbolos étnicos em símbolos nacionais não só oculta uma situação de dominação racial, mas torna muito mais difícil a tarefa de denunciá-la”.
Anos depois, o autor rejeitou sua análise anterior. Sua experiência na África ajudou. No Zimbábue, a linha entre as “raças” era muito clara, enquanto em Moçambique era um pouco mais confusa. Fry compreendeu melhor que certos países, em especial colônias portuguesas, passaram por um processo de “assimilação”, diferente da segregação vista em colônias inglesas. No Brasil, não apenas a feijoada, mas também o candomblé, a capoeira e o samba ultrapassaram a fronteira “racial” e viraram símbolos nacionais.
Não havia uma fronteira clara dividindo brancos e negros. A mistura sempre predominou. No entanto, o governo, ancorado em algumas ONGs financiadas por poderosas entidades estrangeiras, vem adotando medidas que podem mudar este quadro. Ao importar uma realidade americana para nosso país, o governo poderá estimular a segregação “racial”. O racismo existe, sem dúvida. Mas não se trata de uma prática amplamente disseminada no país, e sim de lamentáveis casos isolados.
Quando a própria lei passa a dividir os indivíduos com base na “raça”, o racismo está claramente sendo estimulado. Toda política que celebra a crença em raças contribui para a persistência do racismo. Uma população miscigenada, que se considera basicamente “parda”, será obrigada a se definir como negros ou brancos. Para piorar, o governo cria privilégios através das cotas, incentivando um verdadeiro racha entre ambos. Os racialistas gostariam de criar uma “nação negra” dentro da nação brasileira. A feijoada, o samba e o candomblé seriam vistos, por este prisma, como símbolos da negritude, não mais como símbolos nacionais.
Os racialistas tentam criar uma “consciência racial” que simplesmente não existe no Brasil. Os brasileiros classificam a partir da aparência da pessoa, diferente dos americanos, que privilegiam a ascendência. Bastava uma gota de sangue, um distante ancestral negro, para que a pessoa fosse classificada como negra nos Estados Unidos. Já no Brasil existem inúmeras classificações intermediárias: “moreno”, “mulato”, “mestiço”, etc. A visão bipolar americana difere da visão multipolar brasileira, que os racialistas desejam destruir, substituindo-a por um conflito entre “raças”.
Peter Fry diz: “Os ideais de não-racialismo e da libertação do indivíduo de qualquer determinação ‘racial’, que no Brasil se tornaram a ideologia oficial por muitos anos e que formam a visão de mundo de muitos brasileiros até hoje, são valores cada vez mais raros no mundo contemporâneo. Contra as obsessões étnicas e raciais que têm produzido os mais terríveis conflitos e a maior mortandade humana na história recente, vale a pena levar estes idéias a sério”.
Martin Luther King tinha um sonho, de viver num país onde seus filhos fossem julgados não pela cor da pele, mas pelo seu caráter. Trata-se da meritocracia no lugar do racismo. O Brasil, a despeito de seus defeitos, tem demonstrado ser capaz de preservar parcialmente esta visão de mundo. Não podemos deixar que alguns poucos militantes organizados destruam isso.
(O Globo, 27/10/2009)
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