Política pública faz-se com evidências! Assim, ao menos, esperamos que os agentes formuladores e executores desempenhem suas funções. Todavia, se há questões para as quais existe vasto material esclarecedor e, não raro, consensos científicos sobre os quais o gestor público pode apoiar-se com segurança (e. g. protocolos contra sarampo, varíola e febre amarela); é igualmente verdadeiro que, por vezes, cenários inteiramente novos apresentam-se, impondo a todos os responsáveis desafios de toda ordem. O conhecimento limitado de uma ameaça, no entanto, não pode autorizar aqueles responsáveis por combatê-la de prescindir de cautelas que seriam aplicáveis a casos análogos, sob pena de agravar o quadro que genuinamente tentam remediar. É necessário ter essa clareza para que a luta contra o COVID-19 não seja pautada pela lógica do “é melhor errar para mais”.
A despeito de haver o mundo amadurecido enormemente no desenvolvimento de protocolos sanitários direcionados ao combate e contenção de emergências sanitárias, desde pelo menos as crises provocadas pelo SARS, (2003), influenza – H1N1 (2009) e ebola (2013); o caso do novo Corona impõe uma nova gama de desafios. Isso porque, embora se trate de uma espécie de síndrome respiratória aguda, como é o SARS, não temos exata dimensão de grandezas fundamentais para a preparação de estruturas de resposta, tais como: taxa de transmissão, mortalidade, mutação, impacto de fatores ambientais e genéticos, dentre outras.
Trata-se de ameaça que vem sendo conhecida conforme a combatemos, dinâmica equivalente à retratada na expressão “trocar a roda do carro andando”. Ressalte-se a esse ponto, iniciativas heroicas como o Coronavirus Resource Center, da John Hopkins University, que vêm, dentro das cautelas que o rigor da metodologia científica impõe, alimentado, quase que em tempo real, por autoridades ao redor do mundo, com achados que incessante e gratuitamente disseminam por intermédio de seus respectivos portais . Mesmo na linha de frente do combate, cabe aqui a menção ao Brasil, o qual, a despeito da ciranda de vaidades que engolfa União, estados e municípios, alimentada por agentes políticos que seguem em período eleitoral demasiado estendido, a resposta das autoridades sanitárias, galvanizada pela liderança do ministro Mandetta, parece, dentro de nossa realidade de país em desenvolvimento, estar dentro de padrões satisfatórios.
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Crises dessa natureza, portanto, devem ser enfrentadas com o cuidado de quem percorre um caminho desconhecido, precavendo-se contra os piores cenários que a mente dos especialistas é capaz de projetar. Sem embargo, nem o mais absoluto desconhecimento, nem a necessidade de precaução podem autorizar as autoridades a tomarem decisões drásticas sem considerações prévias de natureza técnica que a prudência recomenda. Não podem, sob qualquer justificativa que seja, sentirem-se a vontade para agir por impulso, muito menos de maneira autoritária ou açodada, como, por vezes, se observa.
Assim, por exemplo, é necessário que antes de colocar uma cidade, região ou mesmo a totalidade de um estado em quarentena; as autoridades considerem a delimitação de corredores de abastecimento, sem os quais sujeitam não apenas a população isolada ao desabastecimento, mas os próprios profissionais encarregados do combate ao vírus a verem-se desguarnecidos de insumos básicos, tais como luvas, máscaras, remédios e outros. Teríamos, nesse cenário hipotético, porém factível, não apenas uma população doente, mas faminta, sendo cuidada por profissionais cuja capacidade de resposta estaria comprometida pela impossibilidade de reposição de material.
A determinação indiscriminada para o fechamento de comércio é outro exemplo potencialmente pródigo em consequências negativas. Nesse sentido, basta uma determinação mal desenhada ou mesmo uma comunicação mal transmitida, de tal maneira a causar a percepção de que haverá indisponibilidade de bens essenciais, para deflagrar uma corrida a supermercados, gerando, não raro: desistência do isolamento social recomendável e consequente aumento da taxa de transmissão do vírus, elevação de preços, desaparecimento de produtos (e.g. álcool gel) dentre outras consequências deletérias. Nos casos mais graves, em havendo a percepção de escassez de alimentos, podem as agências de segurança verem-se obrigadas a combater um cenário generalizado de saques.
Curiosamente, se de um lado, algumas autoridades pecam pelo açodamento, de outro, quedam-se absolutamente inertes frente a hipóteses que deveriam demandar sua total atenção. Independente do que se sabe ou não sobre o COVID-19, é imperioso antecipar-se no desenho de respostas para contextos que apresentam potencial de serem epicentros de verdadeiras tragédias humanas. Desse modo, mesmo que alguns aspectos sobre a pandemia permaneçam obscuros, é seguro concluir que o vírus terá particular efeito sobre regiões onde o adensamento demográfico é inversamente proporcional à infraestrutura disponível, realidade que se observa nas periferias da Grande São Paulo e nas favelas que pontilham o estado do Rio de Janeiro. A dificuldade de acesso, a escassez de bens e serviços essenciais, a condição dos domicílios são potenciais catalisadores dos efeitos adversos do Corona.
Desafio tão ou mais complexo enfrentam os gestores dos estabelecimentos penais no Brasil, que têm diante de si a pandemia como um novo elemento de estresse da população carcerária a ser mitigado. Soma-se à hercúlea tarefa de evitar que tais estabelecimentos entrem em ebulição pelo pânico dos custodiados a difícil missão de manter a saúde de pessoas em ambiente onde a realização de um simples exame clínico pode, na prática, desdobrar-se em intrincada operação de transporte, sujeita a variáveis graves de segurança. Tudo isso colocado na perspectiva de uma infraestrutura sucateada e de escassez de recursos materiais e humanos leva à conclusão de que urge haver um plano de resposta específico para os ambientes carcerários brasileiros.
Examinadas essas breves considerações, percebe-se que em crises sanitárias como a que atravessamos atualmente, o papel das agências de segurança é duplamente desafiador, uma vez que se espera delas não somente que controlem os fatores perturbadores da ordem pública (objeto do serviço público de segurança) mas que não sejam, elas mesmas, elementos capazes de agravar a situação. Não há dúvida que o momento exige a máxima proatividade por parte dos agentes públicos. É mister, todavia, que tamanha diligência seja permanentemente balizada pela técnica e pela prudência, sempre consciente de que, quer em tempos normais, quer em tempos de COVID-19, a virtude estará sempre no meio.