O matemático francês Étienne Ghys, de 63 anos, é um caso raro de pesquisador com múltiplos interesses. Ele gosta de mergulhar na matemática pura, um tipo de raciocínio abstrato, que explora conceitos sem ligação com a aplicação prática aparente e de difícil entendimento para os não iniciados. Mas ele gosta também de explorar formas de explicar conceitos matemáticos para os leigos — algo raro entre cientistas como ele. Seu interesse em popularizar conceitos matemáticos é tal que roteirizou e dirigiu duas séries de animação, com nove capítulos cada uma, para explicar a Quarta Dimensão e a Teoria do Caos para crianças. Nas palestras que profere em escolas primárias, explora a relação da matemática com a moda, o futebol e outros temas. Seus esforços para transformar a matemática num assunto pop lhe rendeu um prêmio do Instituto Clay, dos Estados Unidos. Étienne Ghys é apaixonado pelo Brasil. Em 30 anos, morou seis vezes no país, por pequenos períodos, sempre trabalhando em projetos pelo Instituto de Matemática Pura e Aplicada (Impa), no Rio de Janeiro. Hoje, ele dirige a unidade de matemática pura e aplicada da Escola Normal Superior de Lyon, na França. Étienne está no Rio de Janeiro, onde acompanha a Olimpíada Internacional de Matemática, que ocorre até domingo (23). É a primeira vez que o país sedia a edição global do evento. Para o matemático, eventos como esse são essenciais para a divulgação do tema entre os estudantes da educação básica.
Época – Uma pesquisa mostrou que áreas ligadas à matemática respondem por 16% do PIB e por 10% das vagas de emprego no Reino Unido. O que a propagação da matemática pode fazer por um país como o Brasil?
Étienne Ghys – Esse tipo de levantamento faz um retrato muito parcial porque elege os tipos de atividade que parecem obviamente ligados à matemática — e ainda assim tenho minhas dúvidas sobre quanto são confiáveis. O aprendizado da matemática consiste no desenvolvimento do pensamento matemático, não se trata de aprender a fazer contas. Um país que investe no bom ensino de matemática terá o impacto dessa ação em diversas áreas de atividade: nas artes, na literatura, no governo. Sem matemática não há como desenvolver um país. O melhor exemplo, para mim, de um país com efeito difuso da matemática é o meu país depois da Revolução Francesa.
Época – O senhor pode explicar?
Ghys – Napoleão Bonaparte entendeu que a reorganização da sociedade, depois da revolução, deveria se dar a partir da matemática. Antes da revolução, matemáticos eram pessoas isoladas que faziam matemática pelo prazer, demonstrando teoremas pouco úteis. Depois da revolução, a matemática virou útil e passou a ser valorizada e incentivada para além do conhecimento abstrato. A matemática foi usada para formar engenheiros, professores universitários e o próprio sistema pedagógico francês. Nessa época, foram criadas escolas famosas como a Politécnica e a Escola Normal de Educação Superior com o objetivo de trazer para Paris os melhores alunos da França para estudar com os melhores professores. Esses alunos voltavam, então, para o lugar deles para disseminar o que tinham estudado. Essa ideia foi uma ferramenta muito importante para o desenvolvimento da ciência na França. Por isso, a matemática francesa do século XIX é muito melhor que a matemática inglesa e italiana. A forma de exercer o poder político na França foi toda baseada na matemática.
Época – Quais são os exemplos disso?
Ghys – Napoleão Bonaparte gostava muito de matemática. Existe até um teorema de Napoleão. Alguns historiadores suspeitam que ele tenha roubado esse teorema num dos saques que fez na Itália, durante a guerra. É uma polêmica divertida. Mas o fato é que Napoleão tinha a matemática em alta conta. Entre seus amigos estavam os maiores matemáticos da história, como Pierre-Simon Laplace, Gaspard Monge e Joseph-Louis Lagrange. Esses grandes matemáticos influenciaram diretamente a forma de organizar a nascente república francesa. Numa assembleia nacional, quantos deputados são necessários, como chegar ao número que dará representatividade justa às diferentes regiões do país? Essa definição pode variar de dez pessoas a 10 mil. Foram testados diversos modelos, com inúmeras variantes, para chegar ao formato que melhor atenderia aos interesses da maioria. A matemática foi tão importante para a organização política francesa que o filósofo e matemático marquês de Condorcet escreveu muitos livros sobre como tomar decisões políticas. Seus trabalhos discutem profundamente sistemas de votação baseados em proporcionalidade ou maioria. Esses livros foram fundamentais na democracia — não só a francesa. Até aqui no Brasil eles são usados.
Época – Com base nessa experiência, o senhor acha que um bom governo é um governo matemático?
Ghys – O filósofo Platão fez essa afirmação. Em seu livro “A cidade ideal”, o rei é um matemático. Quando se governa com o olhar matemático, há menos chances de cometer injustiças. É claro que, se o governante não se importa com isso, tanto faz. Mas, de outra forma, a concepção matemática pode ajudar a fazer mais para um maior número de pessoas. Tome como exemplo o aplicativo de trânsito Waze. Ele é um sistema matemático dinâmico usado para ajudar o indivíduo a achar qual é o melhor caminho. Ele não tenta resolver o problema de verdade. O problema de verdade é como ter um trânsito melhor para todos. O programa poderia ajudar nessa resposta se calculasse a redistribuição global do trânsito. Nesse modelo, talvez para você o caminho ficasse cinco minutos mais longo, mas, em contrapartida, essa mudança significaria uma hora a menos de trânsito para muito mais gente. Ele seria um sistema melhor para a comunidade — e isso beneficiaria o indivíduo muito mais do que ocorre com o modelo atual.
Época – A matemática brasileira tem as piores notas do mundo. O último levantamento global mostra que as crianças de 15 anos de hoje sabem menos matemática do que sabiam as de 2007. Como mudar esse quadro?
Ghys – Esse é um assunto muito sério porque o Brasil precisa muito da matemática. O país precisa de mais engenheiros e precisa se beneficiar do raciocínio matemático para seu desenvolvimento econômico. Para isso ocorrer, é preciso mexer com os professores. Eles fazem a diferença para o bem e para o mal. É preciso fazer duas coisas essenciais: em primeiro lugar, melhorar o salário dos professores. Eles têm de ganhar para ter uma vida digna, em que possam se dedicar com o mínimo de tranquilidade ao que fazem. Outro ponto importante é melhorar a formação dos professores. Para isso é importante criar uma conexão entre os pesquisadores e os professores da educação básica. No Impa, isso já começou. Mas não é fácil. Há muita gente contra isso. A academia em geral não gosta de trabalhar com a sala de aula básica.
Época – Por que há essa resistência por parte da academia? Há preconceito contra a educação básica?
Ghys – Não digo que seja preconceito. Acho que é um problema relacionado a uma tradição muito antiga e arraigada. Quando eu era um jovem matemático na França, minha promoção só dependia da qualidade de minha pesquisa, dos artigos publicados, dos livros publicados. Qualquer trabalho que eu produzisse em escolas, com alunos, com didática, não contava. Não havia valorização fora da área da pesquisa. As coisas estão mudando. Eu tenho dois alunos de doutoramento em Lyon que trabalham em suas teses com a eficácia da divulgação da matemática. Há 20 anos, seria impossível a academia aceitar a divulgação como um objeto de pesquisa de doutorado. Então, essa área começa a ser valorizada, mas ainda há resistência.
Época – De onde vem a má fama da matemática entre os estudantes?
Ghys – O problema é que a matemática do ensino básico se desconectou da vida real. Esse é um problema da maioria das culturas. Os professores colocam os meninos para fazer contas e raciocínios abstratos que não têm nada a ver com a vida deles. É uma pena porque a matemática está em todo lugar e os professores deveriam ensinar mostrando isso. Isso é culpa minha, é culpa de Napoleão, é culpa dos matemáticos do Impa, é uma culpa coletiva. Infelizmente, a matemática se desconectou do resto do mundo, por causa do elitismo. Ela virou um teste de inteligência, usado para separar as pessoas.
Época – Por que há tão poucas mulheres matemáticas?
Ghys – Olha, esse é um problema enorme! Já vi estudos sociológicos e de psicologia que sugerem que culturalmente pregamos na cabeça de meninos e meninas que matemática é uma área masculina. Parece que os professores, sem saber, estigmatizam desde muito cedo a garotada. Pela experiência que tenho de sala de aula, essa explicação faz sentido para mim. Na França, houve um teste nas escolas primárias com geometria. Os meninos tiveram desempenho melhor do que as meninas. O mesmo teste foi dado em outras escolas, mas desta vez os professores deram nome de teste de desenho. Então, as meninas se saíram melhor. Na França, já houve campanhas para atrair meninas para a matemática. Não deu certo. Sinceramente, não sei como solucionar essa questão. Um possível começo é todos olharmos para esse problema. Precisamos de mais mulheres na matemática.
Fonte: “Época”, 19/07/2017.
No Comment! Be the first one.