No fim da década de 1970, uma infestação de coelhos ameaçava as plantações das fazendas do interior da Inglaterra. Para contê-la, as autoridades locais espalharam o vírus da mixomatose, alastrando uma doença que deixava os animais letárgicos. Mas isso causou efeitos colaterais em cadeia. Com menos coelhos, aumentaram as ervas daninhas, que mataram a grama baixa. A grama alimentava as formigas, que ajudavam na proteção dos ovos da borboleta-azul. A ação contra os coelhos, no fim, acabou matando as borboletas. O animal é usado como metáfora do crescimento econômico no livro “Como matar a borboleta-azul – uma crônica da era Dilma” (Intrínseca, 2016), lançado neste sábado (8), por Monica de Bolle, pesquisadora do Peterson Institute for International Economics.
Foi por intervir demais na economia que Dilma Rousseff matou a “borboleta-azul” do crescimento, fazendo o Brasil mergulhar na maior recessão da história, com queda prevista de 7% do Produto Interno Bruto (PIB) entre 2015 e 2016. No livro, Monica faz uma retrospectiva de vários dos desacertos da ex-presidente, que adotou políticas protecionistas ultrapassadas, exaltou campeões nacionais e lançou mão de diversas medidas paliativas, com os famosos “pacotes”. “Devemos saber como as ações no presente afetam coisas e relações que podem não estar sendo levadas em conta. É uma questão de cautela e prudência”, disse Monica a “Época”.
Segundo ela, a atual equipe econômica, sob o comando de Henrique Meirelles, é mais pragmática e menos ideológica e, por isso, mais capacitada para empreender o ajuste fiscal necessário ao controle das contas públicas. No entanto, a pesquisadora critica a falta de esforço do governo em comunicar a sociedade a necessidade de adotar medidas duras. “Sem as reformas, o dinheiro será retirado do trabalhador da mesma forma, pela via inflacionária. Isso é algo que as pessoas compreendem e que o governo deveria enfatizar.” Confira a entrevista.
Época – Assim como na política, o debate econômico no Brasil está bastante polarizado entre “desenvolvimentistas” e “liberais”, “ortodoxos” e “heterodoxos”. Por que temos tanta dificuldade em sermos mais ponderados?
Monica de Bolle – A polarização, no Brasil, é muito presente no debate econômico, diferentemente de outros países. Nos Estados Unidos, não há tanta. Há discussões entre diferentes maneiras de olhar para o tamanho do Estado, pensar a estrutura tributária, entre outros temas, como a taxação de impostos sobre os mais ricos, que divide republicanos e democratas. Mas não existe um embate que classifica as pessoas como “isso” ou “aquilo”. Não há essa rotulação. A polarização está presente no mundo inteiro, ela é inequívoca. O Brasil está na tendência global nesse aspecto, infelizmente. Isso mata a intelectualidade. Se você é capaz de sentar e discutir com alguém com uma visão oposta a sua, e a partir daí mudar nuances de sua perspectiva, você teve um crescimento intelectual. Quando você polariza, isso morre.
Época – Independentemente do rótulo, há consenso entre economistas de que a economia brasileira precisa de reparos para voltar a crescer. Como avalia a estratégia do governo em conduzir o ajuste fiscal?
Monica – Existe uma tentativa legítima do governo de colocar na gestão fiscal travas que não existiam, como o controle de gastos que crescem como se não houvesse amanhã. Mas uma coisa é desenhar reformas desejadas no papel; outra é colocá-las em prática. Como nessas reformas existe um componente forte de perdas de direitos, existe também uma tentação de construir uma narrativa deturpada dos fatos, que diz que o governo quer “meter a mão no bolso do trabalhador sem dar nada em troca”. Isso é uma falácia. Temos um sistema fiscal insustentável. O governo tem culpa nessa história, pois não tem feito o devido esforço de comunicar-se com a população. O recado deve ser: se isso não for feito, dinheiro acaba. O problema no Brasil é que as pessoas evitam a clareza em dizer a real necessidade de adotar medidas, que, às vezes, são duras. Há uma tentação inata nos políticos de não dizer a verdade. Comparando a crise brasileira e as reformas que temos na pauta, com a crise e as reformas dos países europeus, vemos claramente a diferença de postura. Lá, mesmo nos lugares onde a crise foi acachapante e as reformas tiveram um custo social imenso, como na Grécia, o que tinha de ser feito foi comunicado à exaustão.
Época – O que, especificamente, falta na comunicação do governo sobre medidas de austeridade?
Monica – Com a bagunça fiscal, se não for consertada, teremos uma alta da inflação, como vimos nos anos 1980. Não teremos a mesma inflação daquela época, mas o mecanismo é o mesmo. Sem as reformas, o dinheiro será retirado do trabalhador da mesma forma, pela via inflacionária. Isso é algo que as pessoas compreendem e que o governo deveria enfatizar. Se nada for feito para organizar as contas públicas, o governo terá de se autofinanciar, pressionando a inflação. No longo prazo, é muito pior para as pessoas, pois a distorção é mais acentuada. É frustrante olhar o estado calamitoso da economia brasileira e não enxergar ninguém que tenha coragem de dizer isso de forma objetiva.
Época – Além da falta de comunicação, quais os entraves enfrentados pelo governo na implementação do ajuste?
Monica – O governo carece da legitimidade popular para convencer as pessoas de que esse é o caminho melhor para o Brasil neste momento. Essa falta de legitimidade tem vários componentes: o PMDB foi parceiro, cúmplice do PT por 14 anos. O processo de impeachment, do qual fui a favor, aconteceu com figuras como Eduardo Cunha e Renan Calheiros, envolvido em diversos escândalos, não ajudam a legitimar. É muito diferente do impeachment do Collor. Essa falta de legitimidade atrapalha, pois o ajuste já é difícil. O teto do gasto as pessoas não entendem muito. E esta reforma é inócua sem mudanças na Previdência, que é contenciosa. O governo não explica para as pessoas por que ela precisa ser feita. Estamos com o texto da PEC na Câmara e o Temer já disse que quer apresentar a reforma da Previdência antes do fim do ano. Como fazer isso, se não explicamos para o povo o que isso significa? Eu não entendi. Entendi que a idade da aposentadoria será mais alta. Essa parte é fácil, mas e o resto? Como desindexar os benefícios? O que isso significa para quanto o aposentado pode esperar receber para sua vida? E que garantia terá de que isso não será modificado novamente? Essas perguntas não foram esclarecidas. O mistério da reforma da Previdência, somado a um governo que tem boa dose de desconfiança da sociedade, torna o quadro muito estranho. Não acho que as reformas sejam inviáveis, mas são difíceis.
Época – Como avalia a leitura, pós-eleições municipais, de que o PSDB e o PMDB se fortaleceram e de que isso favoreceria a negociação do ajuste fiscal?
Monica – O que chama mais a atenção é o grande repúdio aos políticos tradicionais nas urnas, com quase 25% de abstenção de votos. É imediatista a leitura de que o PT perdeu e o PSDB e o PMDB venceram. Essa leitura não considera as condições na travessia que temos até 2018. De qualquer forma, acredito que teremos uma melhora na economia: lenta, gradual e difícil, não esplendorosa. Mas também teremos um quadro contrário ao de 2014. Naquele ano, víamos que o país estava afundando. Porém, havia uma distância entre o prognóstico e o sentimento da população, que estava praticamente toda empregada com a renda em alta. Veremos agora esse mesmo descasamento, mas ao contrário: teremos uma recuperação da economia, mas o povo não vai sentir. Porque o mercado de trabalho continuará ruim, e a renda seguirá em queda. Nesse quadro, um governo com pouca chance de ter legitimidade por desempenho e num país em que a política tradicional é repudiada, como chegaremos a 2018? Até lá, o governo tem a missão de começar a recuperação econômica e fazer isso com fôlego suficiente para aumentar as chances de ter um governo de continuidade.
Época – Intervir demais matou a “borboleta-azul”. Intervir menos é, portanto, condição necessária para que isso seja alcançado?
Monica – Não só menos, mas interferir de forma inteligente. Devemos saber como as ações no presente afetam coisas e relações que podem não estar sendo levadas em conta. É questão de cautela e prudência. A atual gestão é mais inteligente nesse sentido. Tem esse perfil, esse cuidado. Existe uma dose de pragmatismo bem maior. Não é movida a ideologia. A ideologia interfere nesse processo mental. Se você acredita que é o governo que vai trazer o crescimento em um determinado nível, vai reduzir a desigualdade, gerar emprego, entre outras coisas, você já perdeu completamente a capacidade de analisar os efeitos perversos das interferências. Essa é a marca do governo Dilma. A nova equipe econômica tem outro entendimento de como as coisas funcionam. Há, hoje, uma percepção de que, se interferirmos demais, as coisas não funcionam.
Época – E qual o papel do Estado nesse contexto?
Monica – Isso não quer dizer que o Estado não tem papel. No caso da redução da desigualdade, por exemplo, quando traduzi o livro de Thomas Piketty [O capital no século XXI] e falei do papel do Estado nesse sentido, fui taxada de comunista. Ao defender o pragmatismo, sou liberal. Sou ao mesmo tempo as duas coisas. E não é por aí. Temos de saber identificar o que dá certo e errado, quais os objetivos se quer atingir com as metas traçadas.
Época – A presidente Dilma foi muito criticada pela falta de um plano de desenvolvimento de longo prazo. Você percebe que, agora, o presidente Temer tem ou está construindo esse plano? Quais as evidências disso?
Monica – Temos alguns elementos de um plano de longo prazo. Ele não pode ser só fiscal. Há o plano de concessões e privatizações, que é perna importante desse processo. Existe uma visão mais pragmática sobre a inserção do Brasil no mundo, de maior abertura comercial, ainda que o momento não seja o mais promissor, diante da onda de protecionismo em todos os países. Há várias frentes de ação para que a borboleta-azul, metáfora do crescimento, volte ao país.
Fonte: Época, 08/10/2016.
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