São 7 horas da manhã e uma fila de pessoas começa a se formar na porta da Superintendência do Trabalho em Caxias do Sul, cidade a 130 quilômetros de Porto Alegre. É assim todos os dias. Trabalhadores buscam a superintendência para tentar garantir o seguro-desemprego, depois de uma primeira negativa em outros postos de atendimento.
A porta fica semiaberta. Às 8h30m em ponto, é aberta em definitivo pelo segurança, que distribui apenas 20 senhas. Dentro, o gerente regional do Trabalho e Emprego em Caxias, Julio Cesar Goss, de 51 anos, já está a postos para iniciar os atendimentos, num guichê bem em frente à porta principal do predinho simples de dois andares no centro da cidade. Sem Julio Cesar, não há andamento nos recursos do seguro-desemprego. Ele é o único — com seus login, senha e computador — habilitado para a função.
Em dezembro do ano passado, o servidor do Ministério do Trabalho virou réu na Justiça Federal no Amapá, onde atuava até 2015. Julio Cesar foi denunciado pelo Ministério Público Federal (MPF) pelos crimes de estelionato e inserção de dados falsos em sistema de informações. A suspeita é de fraude no pagamento do seguro-desemprego destinado a pescadores, o chamado seguro-defeso. O crime teria ocorrido em 2014, segundo o MPF. Julio Cesar teria atuado para assegurar benefícios fraudulentos a três segurados, conforme a acusação.
A denúncia não impediu o funcionário de seguir operando um sistema para liberação do seguro-desemprego, agora em seu guichê na gerência em Caxias do Sul, sempre rigorosamente a partir das 8h30m. Ocorre que as suspeitas se ampliaram. O Ministério do Trabalho identificou que o login de Julio Cesar está por trás da liberação de 7 mil seguros-defeso com suspeitas de fraude, entre agosto de 2016 e março deste ano. E isto em Caxias, uma cidade sem rios, sem litoral, sem pescadores.
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Todo cuidado é pouco
O valor efetivamente pago superou os R$ 13 milhões. O total previsto das parcelas alcançaria mais de R$ 24 milhões, mas parte acabou bloqueada. A Polícia Federal (PF) passou a investigar o caso e identificou que a atuação do servidor — um burocrata, agente administrativo, com cargo de gerente e salário bruto de R$ 4,5 mil — tem ramificação em outros estados.
No último dia 13, o Ministério do Trabalho encaminhou à PF uma lista com 50 nomes de pessoas que operam de alguma forma o sistema do seguro-desemprego e sobre as quais há indicativos de fraudes na liberação do seguro tradicional e do seguro-defeso. São funcionários dos governos nos estados, com atuação no Sistema Nacional de Empregos (Sine), ou da própria pasta, lotados nas superintendências regionais.
Julio Cesar lidera a lista. A exemplo dele, a maior parte desses agentes continua na ativa, atrás de seus respectivos guichês em unidades de atendimento. É o caso de Carla Suzy Viana, que atua num Sine localizado no subsolo de um movimentado camelódromo em Goiânia. Ela fica na recepção prestando os primeiros atendimentos a interessados no seguro-desemprego. O ministério identificou indícios de fraudes em 600 benefícios cadastrados com o login de Carla, com liberações efetivas no valor de R$ 820 mil e parcelas previstas de R$ 4,1 milhões.
— Meu advogado já esclareceu isso. O ministério trocou minha senha várias vezes. Meu nome está mais sujo que pau de galinheiro. Estou devendo mais que tudo — diz a servidora do governo de Goiás.
Fraudes nos pagamentos de algum tipo de benefício de assistência — seja previdenciário ou da natureza do Bolsa Família e do seguro-desemprego, por exemplo — acontecem centenas, milhares de vezes por dia, segundo a percepção de investigadores da PF. A estimativa é que 70% dos inquéritos da PF — cerca de 80 mil — dizem respeito a esse tipo de fraude.
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Cada caso individualizado acaba virando um inquérito, o que dificulta identificar o rosto por trás da fraude e finalizar uma investigação que gere um efeito repressor. Por isso, a PF desenvolveu uma ferramenta própria que permite identificar caminhos usados para o crime. Os casos, agora, vêm sendo reunidos em poucos inquéritos, de forma a apontar quem são os servidores envolvidos.
Foi assim numa operação deflagrada em fevereiro para combater fraudes no seguro-desemprego no Pará e no Maranhão. Somente na cidade de Redenção (PA), entre 300 e 400 seguros eram fraudados todo mês. Em vez de cada um desses casos virar um inquérito, a PF optou pela abertura de quatro procedimentos. De 20 presos na operação, 19 eram funcionários com atuação dentro das agências.
A dimensão das fraudes no seguro-defeso é ainda mais absurda. Uma auditoria do Ministério da Transparência e Controladoria Geral da União (CGU) concluída em outubro do ano passado apontou um recebimento indevido do benefício por 66% dos segurados ouvidos na fiscalização.
O defeso é o período em que a pesca fica proibida em razão da época de reprodução dos peixes. O seguro pago é de um salário mínimo, por no máximo cinco meses, a pescadores que tenham exercido a atividade de forma exclusiva e ininterrupta nos 12 meses anteriores. Até 2015, os pagamentos e cadastros estavam a cargo do Ministério do Trabalho. Agora, a responsabilidade é do INSS. O total pago saltou de R$ 602 milhões em 2008 para quase R$ 2 bilhões em 2015.
O Rio Grande do Sul é um estado com 16,1 mil pescadores artesanais, segundo dados do Registro Geral da Atividade Pesqueira (RGP), usado como base para pagamentos do seguro-defeso. Um único login, o de Julio Cesar, aparece relacionado a 7 mil benefícios, o que equivale a quase metade dos segurados no estado.
Em Caxias do Sul esses segurados não estão. Há apenas dois beneficiários que são da cidade, segundo dados do Portal da Transparência do governo federal. No posto do INSS, que tem atribuição de receber os pedidos desde 2015, não chegou nenhum requerimento de pescador desde então. O rio mais próximo está a 100 quilômetros de Caxias do Sul. O litoral, a 200 quilômetros.
— Se fosse defeso da uva, aí sim, haveria bastante requerimento — diz em tom de brincadeira uma servidora do INSS de Caxias, cidade da serra gaúcha que tem tradição no cultivo da uva.
Julio Cesar diz nunca ter entrado no sistema para emitir um seguro-defeso:
— Não tem pescador aqui.
A suspeita não é de emissão ou cadastro de dados para um novo seguro, mas de uma interferência que seria decisiva para o pagamento pelo INSS. Diante de um bloqueio inicial pelo sistema do INSS, ao identificar que um pescador não tem direito ao benefício, dados seriam alterados a partir do login usado pelo servidor do Ministério do Trabalho, inclusive com a troca do número do PIS do pescador. A partir disso, os pagamentos seriam liberados.
— Eu desconfio, para falar bem a verdade, que deve ser clonagem de senha. Aqui (em Caxias do Sul) e lá (Macapá) também. Aí o pessoal está investigando, para ver como é que é – diz o gerente do Trabalho na cidade gaúcha.
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Julio Cesar foi ouvido pela PF em Caxias em meados do ano passado. Não foi questionado pela suspeita mais recente, mas por fatos relacionados à investigação no Amapá, via carta precatória. O juiz federal Walter Henrique Santos, de Macapá, aceitou a denúncia do MPF em 11 de dezembro de 2017. “Na condição de funcionário autorizado, (Julio Cesar) inseriu dados falsos em sistemas informatizados para causar danos e concorrendo, assim, para a prática do crime de estelionato dos primeiros (acusados)”, cita a denúncia.
O servidor virou gerente em Caxias do Sul dois meses antes de virar réu na Justiça em Macapá. O cargo é burocrático, evitado pelos auditores fiscais do trabalho que atuam na região. Cabe ao gerente representar o ministério em ocasiões esparsas e controlar a frequência dos outros servidores. Julio Cesar topou a empreitada.
Ele continua cadastrando recursos do seguro-desemprego todos os dias em seu guichê. É um funcionário disciplinado. Às 10h10m, já terminou de atender aos 20 trabalhadores interessados num recurso para garantir o seguro-desemprego e que conseguem diariamente as senhas. O acesso ao sistema não pode se dar de forma remota, mas apenas na própria máquina utilizada pelo funcionário.
Nem o Ministério do Trabalho nem o INSS comentam o caso envolvendo o servidor. A pasta também não quis responder sobre a situação da funcionária do Sine em Goiânia. O governo de Goiás disse não ter sido notificado pela Justiça ou pelo ministério sobre supostas irregularidades na concessão do seguro-desemprego e que, mesmo assim, a secretaria responsável pelo Sine vai abrir processos administrativos para apurar as suspeitas de irregularidades. Tanto Carla Suzy quanto outros três servidores, incluídos na lista de suspeitas de fraudes, serão afastados das funções até a conclusão da investigação interna, segundo o governo goiano.
O gerente do Trabalho em Caxias do Sul, por sua vez, diz esperar uma conclusão das investigações.
— Até porque deve ter gente usando o nome da gente. Isso já aconteceu. Inclusive um colega de Porto Alegre… O pessoal estava usando a senha dele num computador em Miami. Então o sistema não é tão seguro assim. Eu não entendo muito de informática. Hoje em dia os caras são muito feras — afirma.
Investigações sobre esse tipo de fraude são “complexas”, segundo Julio Cesar:
— Para aprontar uma prova que te acuse 100% deve ser difícil. É uma investigação complexa. Acho eu, né, porque eu nunca me envolvi com Justiça.
Não há em Caxias do Sul imóveis em nome do servidor do Ministério do Trabalho. Uma pequena lavanderia segue em seu nome, conforme os dados da Receita Federal. Mas na Junta Comercial do Rio Grande do Sul a microempresa já foi cancelada, por inatividade superior a dez anos.
Julio Cesar tem a fala tranquila e é econômico nas palavras e nos gestos. O tom da voz tem uma alteração discreta quando perguntado se ele teme ser preso pela PF:
— Bah, quem não teme? Quem não teme? Por qualquer motivo. Polícia, sendo federal, civil, claro que a gente tem receio. Mas a gente está aí para esclarecer os fatos.
Fonte: “O Globo”