As aulas de História da 5ª série com Dona Alzira renderam-me rico repertório em mitologia. Mal sabia eu como seriam perfeitas as analogias entre as tragédias gregas e o dia-a-dia brasileiro. Pois bem: meu escolhido de hoje é o conto de Prometeu. Caso meu caro amigo leitor não se recorde, trato aqui da lenda do titã que roubou o fogo dos Deuses para presentear a Humanidade e, por consequência, foi severamente castigado por Zeus. Acorrentado ao topo do Monte Cáucaso, Prometeu sofreu durante séculos, pois, diariamente, uma águia vinha lhe comer o fígado – que, por seu caráter divino, regenerava-se até o dia seguinte, atraindo o pássaro para lhe devorar novamente. Não há como negar: em certa medida, ser brasileiro é viver como Prometeu.
A título de ilustração, há décadas o País sofre com desmandos políticos sobre empresas estatais e, por tabela, com o péssimo serviço que entregam. Alguns avanços reformistas de anos recentes, contudo, buscaram mitigar tais obscenidades. Após ser devorado, nosso fígado regenerou-se: surgiu, por exemplo, a Lei das Estatais para impor parâmetros mínimos de boa governança a empresas públicas e evitar o loteamento de cargos por interesses políticos; assim como nasceu o Marco Legal do Saneamento Básico para impor mais concorrência ao setor, impedindo que estatais de água e esgoto abocanhassem contratos de cobertura sem antes abrir licitação ao mercado e assegurar oportunidades de mais investimento com menores tarifas ao consumidor mediante competição. Avançamos! Progredimos! Mas, acalme-se, amigo leitor, pois bons brasileiros que somos, o avanço não poderia sair impune. E, assim como a carne de Prometeu, nosso recente progresso encontra-se agora sob ameaça de desaparecimento pela sinalização dos primeiros atos de governo do Presidente Lula. A águia voltou com fome.
Antes mesmo de tomar posse, houve esforço hercúleo do partido agora governante em desfigurar a Lei das Estatais na tentativa de acabar com o período mínimo exigido de quarentena política a eventuais executivos indicados. O projeto prontamente foi aprovado na Câmara dos Deputados – haja vista a insaciável fome de poder de nosso sistema político ante possíveis nomeações. O destino da boa governança das empresas públicas brasileiras já está por um triz nas mãos das moiras – as três irmãs que, segundo a mitologia grega, teciam, cuidavam e cortavam o fio da vida de cada um de nós. A qualquer momento, podemos ser condenados a ver patrimônio público sendo, mais uma vez, facilmente negociado para fins políticos – como se privado fosse. Lembre-se, pois: por aqui, fígado saudável é fígado a ser devorado.
Mas a maior sinalização de retrocesso de todas, sem dúvidas, fez-se contra os 100 milhões de brasileiros que não podem usufruir do devido esgotamento de suas casas. Para além das promessas de campanha em acabar com o novo Marco Legal do Saneamento Básico, o primeiro pacote de decretos presidenciais (vide MP 1.154/2023) já tratou de indicar o esvaziamento da respectiva agência reguladora, outrora responsável por instituir as normas de referência do setor mediante critérios técnicos – e não político-partidários ou eleitoreiros. O apetite por domínio da máquina é grande – ainda que venha às custas de metade da população do País, que não pode dispor de água ou esgoto tratados.
Alguns descrevem o Brasil como o eterno País do futuro. Outros, como uma galinha de vôo curto, descoordenado e insustentável. Eu, particularmente, gosto de retomar os clássicos à luz do presente: ser brasileiro é viver como Prometeu. O diagnóstico para nos desenvolvermos enquanto Nação já é sabido: instituições sólidas que respeitem os contratos firmados, assegurem a propriedade privada, estimulem a concorrência e garantam liberdade econômica com previsibilidade das regras do jogo. Não é o que acontece por aqui: a águia arranca-nos um fígado por dia. Ainda assim, sobrevivemos – quando em crise, reagimos e nos regeneramos. Mas esta regeneração nunca é o suficiente para nos vermos livres do maldito pássaro que volta ao amanhecer. E, pelas sinalizações da primeira semana do governo recém-empossado, de fato, já amanheceu.