Sergio Moro transfigurou-se, domingo passado, em ícone político. Nome e rosto estampados em meio às multidões, ele ocupou o lugar que, até há pouco, pertencia a Joaquim Barbosa. Repetindo as injúrias desfechadas contra o ex-presidente do STF, os “jornalistas” palacianos acusam-no de conduzir uma campanha de perseguição política. De fato, o juiz de Curitiba fundamenta seus atos em sólidos argumentos legais, que têm encontrado amparo nas instâncias jurídicas superiores. Contudo, ao mesmo tempo, suas manifestações, bem como as dos procuradores e delegados da força-tarefa da Lava Jato, estão permeadas pelo timing e pela gramática da linguagem política. Existe um Moro político, cujos contornos devem ser buscados na tensão dilacerante entre o ideal da república democrática e a realidade da “república dos companheiros”.
Segundo o ideal da república democrática, a esfera pública desdobra-se nos domínios da política e da administração. Os partidos operam no primeiro, formulando plataformas de governo e produzindo legislação. O segundo, em contraste, pertence a uma burocracia profissional, meritocrática e não-partidária, que conduz a máquina pública conforme regras legais. À luz desse ideal, a corrupção política é uma aberração escandalosa, decorrente de uma brecha na cerca que demarca os dois domínios.
O Brasil nunca chegou perto da utopia da república democrática. O lulopetismo, porém, sem desvencilhar-se da herança nacional patrimonialista, elevou a corrupção a um novo patamar. A mudança não é (apenas) de zeros à direita, mas de paradigma. Da tradição comunista, o PT nada conserva a não ser o desprezo à república “burguesa”, isto é, ao conceito de separação entre política e administração. O Moro político nasce da indignação social contra a ocupação partidária da máquina estatal.
Na “era do lulopetismo”, amarraram-se os antigos fios do patrimonialismo com os nós da politização da administração pública. A propaganda oficial do governo e das empresas estatais difunde mensagens ideológicas. Por meio de financiamentos subsidiados, o BNDES teceu alianças entre o PT e o alto empresariado enquanto, no campo externo, amparava os regimes dos “companheiros” castristas e bolivarianos. Ministérios foram cedidos, “de porteira fechada”, a partidos da base governista. Inventaram-se secretarias especiais que funcionam como pátios de folguedos de movimentos sociais. As diretorias das estatais foram loteadas entre operadores do PT e de partidos aliados, semeando-se o terreno onde brotou a árvore do “petrolão”. A aversão a esse estado de coisas manifesta-se pela celebração do juiz de Curitiba.
[su_quote]Ao impugnar a politização da administração pública, a Lava Jato desafia a estabilidade do Brasil[/su_quote]
Há mais que isso, entretanto. A marcha batida da ocupação partidária do Estado representa, potencialmente, uma ameaça à autonomia do Judiciário, do Ministério Público e da Polícia Federal. A Lava Jato é, além de uma operação anticorrupção, um levante de instituições estatais decididas a preservar suas próprias prerrogativas constitucionais. Por isso, todos os seus atores têm plena consciência de que estão inscritos numa arena política e midiática. Moro não fala apenas nos autos, mas emite mensagens políticas nas suas ordens de prisão preventiva. Os procuradores descrevem, pedagogicamente, a estrutura das redes de corrupção que associam empresários e operadores partidários. Os delegados fabricam signos políticos quando escolhem os nomes das fases da Lava Jato.
Ao impugnar a politização da administração pública, a insurgência da Lava Jato desafia a estabilidade do Brasil oficial. Moro faz política porque evoca, num país empapado de cinismo, a utopia da república democrática. Há motivos para que seja celebrado nas ruas. Contudo, no fim das contas, a ruptura que simboliza só pode ser concluída pela ação de representantes eleitos pelo povo. Um juiz ajuda, mas não salva.
Fonte: Folha de S. Paulo, 22/8/2015
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