“O mundo é um palco e todos os homens e mulheres são meros atores. Eles têm suas entradas e saídas de cena e cada homem, a seu tempo, representa muitos papéis”. Essa profunda descoberta está na peça “Como gostais”, ou “Como quereis” (em inglês, “As you like it”) de William Shakespeare. A peça foi escrita em 1599, quando o Brasil, gloriosamente habitado por tupinambás, fundava suas primeiras cidades e era invadido pelos franceses. Vale lembrar essa reflexão sobre o teatro e o mundo que eu chamo de “axioma de Shakespeare” neste Brasil de 2012, habitado por tribos que querem o poder a qualquer preço e por políticos que, diferentemente de Rosalinda (a mocinha da peça), não sabem que há uma razoável distância entre ator e papel, entre o cargo (com suas demandas) e quem o ocupa (com suas limitações). Ademais, é preciso liquidar de vez com a relação entre política e teatro porque, se há muito de teatral na política, política não é teatro. No palco pode haver esse “as you like it” — esse “a teu gosto” shakespeariano. Mas na política é preciso cumprir metas atacando de frente a injustiça e a desigualdade — ou, como lembrou o ministro da Justiça — multiplicar o número de prisões e tirá-las de um medievalismo desumano.
Num caso tudo é fantasia e tem hora para começar e terminar; no outro, a luta contra a iniquidade não acaba e o Brasil, como estamos fartos de saber, está atrasado em quase tudo. Repetimos dramas que não deveriam mais serem vistos com uma insistência que causa vergonha e não os aplausos que conferimos com gosto no teatro.
O fato central é que o axioma de Shakespeare, esse fundador do humano, na opinião douta de Harold Bloom, nos leva a discutir se o papel faz a pessoa ou se ocorre o justo oposto.
Eis a questão que tem permeado a democracia liberal e a modernidade tão exemplarmente demarcadas por Alexis de Tocqueville, quando descobre que, na América que visitou nos 1830, o mundo era construído mais de indivíduos do que de pessoas, como ocorria nas aristocracias das quais ele fazia parte. Nas aristocracias o mundo era fixo, as pessoas entravam nos papéis. Nas democracias, dava-se o justo oposto: o papel era moldado por pessoas que os redesenhavam ou expandiam. Novos papéis eram sempre inventados.
Mas até que ponto podemos sair e entrar dos papéis que o grande palco da vida nos obriga a desempenhar? Até onde eles devem ser levados a sério? Será que hoje vivemos uma dessacralização de todos os papéis?
Penso que não. Sobretudo se falamos dos papéis públicos — os chamados cargos governamentais. Esses papéis tão pouco discutidos no Brasil, mas que têm sido centrais no meu trabalho.
Cargos públicos ou papéis sociais coletivos, voltados para o bem ou para o mal comum, são parcialmente escolhidos e legitimados. Uma pessoa quer ser ministro, mas para tanto precisa ser escolhido pelo presidente. Ser e estar, como disse Eduardo Portella, é um traço fundamental desses ofícios. Eu posso estar e não ser; ou posso ser e não estar. O lado individual tem que ser conjugado pelo lado legitimador da autoridade. Ninguém é ministro sozinho, e, quando se está ministro, não se está individualizado. Pode um ministro dar publicamente uma opinião como cidadão?
Melhor não fazê-lo. Imagine um general dizendo que seus soldados são uns merdas? Ou um presidente dizendo que a tarefa é maior do que ele imaginava? Ou um juiz que se comporta como advogado de defesa?
Tais casos configuram no máximo má-fé e estelionato coletivo (algo a que nos últimos dez anos temos assistido passiva e covardemente no Brasil) e; no mínimo, falta de consciência de que um cargo público (pertencendo à coletividade) não permite que o seu ocupante tenha vida privada. Há cargos e cargos. Mas os públicos, devoram o lado íntimo das pessoas que os ocupam. O cargo, sendo coletivo, contamina o ator, obrigando-o a uma complexa transparência. Só nós, brasileiros, que estamos sempre a reinventar o mundo legal e político com ficções que legitimam o crime como heroísmo e o roubo como parte de uma boa biografia, nos surpreendemos com esse fato.
Se assim não fosse eu poderia ter as páginas deste jornal para falar grosso disso ou daquilo. Não falo porque não sou ministro; porque não tenho a presença coletiva de um cargo que não é meu, mas é do país e da sociedade. Os pais podem maldizer ou abençoar seus filhos, e os ocupantes de cargos públicos podem desgraçar ou exaltar partidos e governos.
É o que vemos hoje no Brasil. Uma shakespeariana troca de papéis com — graça a Deus — consequências e, espero eu, consciência.
Fonte: O Globo, 21/11/2012
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