* Por Leandro Narloch e Leandro Roque
Em fevereiro de 2017, o cineasta José Padilha escreveu um artigo para “O Globo” explicando como funciona aquilo que ele rotulou de “Mecanismo”.
Alguns pontos valem ser destacados:
* Na base do sistema político brasileiro opera um mecanismo de exploração da sociedade por quadrilhas formadas por fornecedores do estado e grandes partidos políticos.
* O mecanismo opera em todas as esferas do setor público: no legislativo, no executivo, no governo federal, nos estados e nos municípios.
* No executivo, ele opera via o superfaturamento de obras e de serviços prestados ao estado e as empresas estatais.
* No legislativo, ele opera via formulação de legislações que dão vantagens indevidas a grupos empresariais dispostos a pagar por elas.
* A administração pública brasileira se constitui a partir de acordos relativos à repartição dos recursos desviados pelo mecanismo. Um político que chega ao poder pode fazer mudanças administrativas no país, mas somente quando estas mudanças não colocam em cheque o funcionamento do mecanismo.
* A eficiência e a transparência estão em contradição com o mecanismo.
* Resulta daí que, na vigência do mecanismo, o estado brasileiro jamais poderá ser eficiente no controle dos gastos públicos.
* As políticas econômicas e as práticas administrativas que levam ao crescimento econômico sustentável são incompatíveis com o mecanismo, o qual tende a gerar um estado cronicamente deficitário.
* Embora o mecanismo não possa conviver com um estado eficiente, ele também não pode deixar o estado falir. Se o estado falir o mecanismo morre.
* A combinação destes dois fatores faz com que a economia brasileira tenha períodos de crescimento baixos, seguidos de crise fiscal, seguidos ajustes que visam conter os gastos públicos, seguidos de novos períodos de crescimento baixo, seguidos de nova crise fiscal.
Tudo isso está correto e o autor merece aplausos por saber identificar o problema.
No entanto, Padilha, talvez por querer posar de isento, comete um erro básico e crucial. Segundo ele:
* O mecanismo existe à revelia da ideologia.
* O mecanismo viabilizou a eleição de todos os governos brasileiros desde a retomada das eleições diretas, sejam eles de esquerda ou de direita (PMDB, DEM, PSDB e PT).
* No sistema político brasileiro, a ideologia está limitada pelo mecanismo: ela pode balizar políticas públicas, mas somente quando estas políticas não interferem com o funcionamento do mecanismo.
Eis o erro de Padilha: o Mecanismo não existe à revelia da ideologia. Muito pelo contrário: o que possibilita a existência e a robustez do Mecanismo é exatamente a ideologia.
E que ideologia é esta?
Foi Nivaldo Cordeiro quem explicou da maneira mais direta:
O Mecanismo é real e existe porque o Brasil nas últimas décadas se permitiu os experimentos esquerdistas os mais funestos. E sua característica fundamental é adotar o modus operandi fascista, qual seja, de concentrar o poder político e econômico nas mãos de quem controla o Estado.
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A elevação avassaladora da carga tributária é a expressão desse mecanismo e, para sobreviver, toda a gente precisa ter um “negócio” com o Estado, seja um emprego, uma aposentadoria, um contrato de serviços ou fornecimento, um depósito bancário.
Tudo depende do Estado e é por ele intermediado. Nada existe fora do Estado. […]
A grande massa de tributos arrecadados garante que a subsistência de cada um dependa da boa vontade da burocracia e da “vontade política”. Só é possível enriquecer e manter-se rico quem tem acesso ao grande ‘excedente’ retido nas mãos do Estado.[…]
E continua:
O Mecanismo existe e é retroalimentado pela ideologia “inclusiva”. Todo o discurso de esquerda é uma promessa para que toda a gente seja incluída como sócia do Tesouro, um absurdo lógico, pois aí não existiria pagador em última instância, uma mentira econômica. O Estado é apenas o instrumento repartidor da renda, não gerador. Para alguém receber algo, alguém tem que pagar.
Nada fora do Estado, é essa a lógica do sistema.
Perfeita a constatação.
O Mecanismo só existe porque há uma ideologia explícita que o sustenta: a defesa de um estado grande, onipresente, intervencionista, ultra-regulador, que em tudo intervém e de todos cuida.
Estado corporativista, protecionista, que tudo abrange e a tudo controla é exatamente a ideologia por trás do Mecanismo.
A lógica é direta: enquanto houver, de um lado, um governo grande, com um farto orçamento público repleto de emendas e brechas, sempre haverá, do outro lado, grupos de interesse poderosos e bem organizados, que irão se beneficiar deste orçamento público.
Mais: esses grupos terão todo o interesse em fazer com que este orçamento cresça cada vez mais, pois são os beneficiários diretos deste aumento dos gastos.
E quem realmente bancará todos esses gastos do governo que irão privilegiar os grupos de interesse são os pagadores de impostos.
Os incentivos do Mecanismo
O óbvio sempre deve ser repetido: o principal motivo para se fazer lobby junto a um estado inchado é a elevada recompensa que isto traz. Quanto maior for o governo, quanto maiores forem seus gastos, maior será o bolo a ser repartido. (No Brasil, como mostra este gráfico, o gasto público nas três esferas de governo chegou a estar em 10% do PIB na década de 1920, e fechou em 43% do PIB em 2016.)
Esta é a prática conhecida como rent seeking (ou “busca pela renda”): é a atividade de conquistar privilégios e benefícios não pelo mercado, mas pela influência política. Na prática, é a captura das instituições regulatórias, de políticos e de burocratas com o objetivo de obter privilégios em prol de grupos interesses.
Os privilégios variam. As mais prosaicas e corriqueiras são crédito subsidiado, patrocínios estatais, tarifas de importação que as protegem contra concorrentes estrangeiros, agências reguladoras que cartelizam o mercado e dificultam a entrada de novos concorrentes, e regulamentações profissionais que aumentam a barreira de entrada de novos concorrentes.
No entanto, a modalidade de rent-seeking que atingiu o estado da arte no Brasil é a dos contratos superfaturados.
Neste arranjo, empreiteiras pagam propina a políticos e burocratas que estão no comando de estatais e ministérios para que elas sejam as escolhidas em licitações de obras. Ato contínuo, esses políticos e burocratas subornados escolhem essa empreiteira. No final, em troca da propina, a empreiteira faz uma obra superfaturada, a qual será pago pelos impostos da população trabalhadora. Empresa, burocratas e políticos ganharam, e a população trabalhadora perdeu.
Em todos os casos de rent-seeking, ocorre o mesmo padrão: um estado grande sempre acaba se convertendo em um instrumento de redistribuição de riqueza. A riqueza é confiscada dos grupos sociais desorganizados (os pagadores de impostos) e direcionada para os grupos sociais organizados (lobbies, grupos de interesse e grandes empresários com conexões políticas).
A crescente concentração de poder nas mãos do estado faz com que este se converta em um instrumento muito apetitoso para todos aqueles que saibam como manuseá-lo para seu benefício privado.
Lobistas e grupos de interesse são a consequência natural de um estado agigantado e com gastos crescentes. E são também a essência do Mecanismo.
Mas não só.
Os cinco elementos do Mecanismo
No Brasil, o Mecanismo é composto majoritariamente por cinco classes principais: os grandes empresários que querem reserva de mercado, subsídios e nenhuma concorrência; as empreiteiras que querem se fartar em dinheiro de impostos por meio de obras públicas; os sindicatos que se opõem à produtividade; os reguladores e burocratas que impingem as legislações; e os políticos que visam apenas ao curto prazo.
Estes são os cinco grupos de poder que formam o Mecanismo.
Sempre que se cria um ambiente de relações estreitas entre, de um lado, os membros do governo (políticos, burocratas e reguladores) e, de outro, grupos de interesse política e economicamente favorecidos pelo governo (empresários anti-concorrência, empreiteiras de olho em obras públicas, e sindicatos), ocorre um fenômeno inevitável: todas as relações políticas passam a ser pautadas pelo famoso lema do “quem quer rir tem de fazer rir”.
Para que políticos, burocratas e reguladores favoreçam grupos de interesse, estes têm de dar agrados em troca. Ao exigir agrados, os agentes do governo estão apenas exigindo sua fatia do bolo: já que o governo está utilizando dinheiro de impostos para beneficiar grupos de interesse, então os agentes do governo que supervisionam esse processo também querem se dar bem nesse arranjo. E aí cobram seus “agrados”.
Estes agrados normalmente se dão na forma de malas de dinheiro, dinheiro em offshores, doação de imóveis, reformas de apartamentos e sítios, doações de campanha etc.
E assim o Mecanismo se mantém.
A Lava-Jato nada mais foi do que a revelação dessa associação entre, de um lado, as grandes empreiteiras e os grandes grupos empresariais e, de outro, os integrantes de toda a esfera regulatória do estado: o que envolve desde burocratas de secretarias até membros do governo executivo (inclusive a presidência da república), passando pelos integrantes do parlamento, legisladores, integrantes da magistratura, partidos políticos, e órgãos de fiscalização e polícia.
Para acabar com o Mecanismo
O Mecanismo, no final, é simplesmente uma atitude lógica adotado por grupos de interesse bem organizados e com grande poder de lobby: tentar cooptar os governantes para que implantem políticas públicas em seu benefício.
Enquanto a mentalidade dominante no Brasil for a da defesa de um estado agigantado e onipresente, que em tudo intervém e de todos cuida, o Mecanismo permanecerá robusto.
Só há uma única maneira de abolir, em definitivo, o Mecanismo e toda a corrupção, os grupos de interesse e os lobbies empresariais que ele fomenta: reduzir ao máximo o tamanho do estado, limitando enormemente (ou até mesmo eliminando) a autoridade política que socialmente concedemos e reconhecemos ao estado. Se o estado perde seu poder de conceder privilégios àqueles grupos que o capturam, estes não irão adquirir autoridade política para obter privilégios à custa da sociedade. Nenhum empresário ou sindicato pode comprar favores de um burocrata que não tenha favores para vender.
A defesa de um estado grande, intervencionista e ultra-regulador é a ideologia que sustenta o Mecanismo.
Fonte: “Mises Brasil”, 05/04/2018