O ministro Luiz Fux, que foi o voto decisivo para impedir que a Lei da Ficha Limpa entrasse em vigor já na eleição do ano passado, frustrando o anseio majoritário da sociedade, ontem, como relator de processos relacionados a sua aplicação, mostrou-se claramente preocupado em estar sintonizado com a opinião pública.
A tal ponto que, ao fim de seu voto, declarou que a decisão do Supremo sobre a constitucionalidade da Lei da Ficha Limpa significará uma verdadeira reforma política.
Ele já havia analisado em seu voto a “séria crise no sistema representativo brasileiro”, atribuindo a ela a cada vez maior judicialização do processo eleitoral”.
Para justificar sua visão favorável aos novos critérios de inelegibilidade, Fux utilizou-se, além de análises técnicas, do anseio do cidadão que gerou a Lei da Ficha Limpa através de uma mobilização popular:
“Para o cidadão hoje, parece claro que a probidade é fundamental para o exercício da função pública, e que a corrupção é um entrave ao desenvolvimento do país”, afirmou.
A presunção de inocência, por exemplo, um dos argumentos dos que defendem que a inelegibilidade só pode se dar depois de esgotados todos os recursos no sistema judicial, foi dissecada pelo relator, que mostrou que sua origem não tem qualquer relação com o princípio eleitoral, e alertou que o Supremo Tribunal Federal não deveria desconsiderar “o descompasso entre a interpretação da presunção de inocência no âmbito eleitoral e a fortíssima opinião popular”.
Para ele, “a sociedade civil identifica-se com a Constituição, mesmo para criticar as decisões do Supremo”.
Na interpretação do ministro Luiz Fux, a exigência de uma condenação transitada em julgado para a inelegibilidade “aniquilaria a exigência de moralidade contida no Artigo 14 da Constituição”.
Para ele, “ao lado da moralidade está a própria democracia”. Ao defender que a norma legal da inelegibilidade tem que ir “além da condenação definitiva, incluindo os fatos pregressos anteriores à lei”, o ministro Fux alertou que “ou bem se realinha o princípio da presunção de inocência, pelo menos no âmbito eleitoral, aos anseios da sociedade, ou desmoraliza-se a Constituição”.
Mesmo considerando que o STF não pode renunciar a seu papel de Corte “contramajoritária e defensora da Constituição”, Fux admitiu, no entanto, que “a própria reação democrática depende, em alguma medida, da resposta popular”.
Dentro desse critério de independência, ele considerou improcedente a Ação Declaratória de Inconstitucionalidade 4578, mas parcialmente procedentes as Ações Diretas de Constitucionalidade 29 e 30, acatando algumas contestações ao texto original da lei aprovada pelo Congresso.
Considerou inconstitucional, por exemplo, a inelegibilidade por renúncia após simples petição, e também o prazo de oito anos de inelegibilidade após o cumprimento da pena.
O fato é que o espírito da legislação que foi enviada ao Congresso através de uma iniciativa popular, figura criada na Constituinte de 1988, tem sido respeitado tanto no Congresso quanto agora no Judiciário, apesar de todas as tentativas de alterar-lhe a configuração.
O espírito da lei tem base na pergunta: por que uma pessoa é impedida de fazer concurso público se tiver antecedentes criminais de alguma espécie, mesmo sem trânsito em julgado, e pode se candidatar e assumir um mandato eletivo?
O voto do relator, ministro Luiz Fux, desfez a ideia de que o Supremo caminhava para desfigurar a lei. O próprio Fux, logo no início do voto, fez questão de ressaltar: “Em decisão anterior, este Tribunal julgou inconstitucional a entrada em vigor da chamada Lei da Ficha Limpa no mesmo ano em que foi promulgada. A situação aqui é completamente diversa”.
A base do voto do relator foi de que a Lei Complementar não viola o princípio constitucional, pois não retroage. “Não produz efeito sobre situações pretéritas, o que seria retroatividade autêntica”, salientou Fux, para explicar que se tratava de “restrospectividade”, quando há efeitos futuros de uma modificação da norma.
No seu entendimento, a situação jurídica da pessoa, como a condenação por colegiado, “é um fato pretérito que terá efeito futuro”.
Fux defendeu que o indivíduo que pretende concorrer a cargo eletivo “deve aderir ao regime jurídico eleitoral”, e não há um direito adquirido de concorrer: “A Lei da Ficha Limpa é apenas um novo fator de inelegibilidade sem aumentar em nada as penas aplicadas anteriormente ao cidadão”.
Ele, porém, mostrou-se cauteloso com alguns aspectos da legislação, como o que prevê a inelegibilidade para oito anos além do fim da pena imposta por condenação definitiva.
“Nesse caso, o indivíduo ficaria inelegível entre a condenação em segunda instância e a condenação final, privado dos direitos políticos pelo tempo da pena e inelegível por mais oito anos.” O que, segundo ele, “afronta” limites estabelecidos na Constituição e “pode se configurar como equivalente à cassação dos direitos políticos”.
Fux propôs que se abata do prazo de oito anos posterior à pena o período de inelegibilidade entre a condenação em segunda instância (decisão colegiada) e o trânsito em julgado.
Também a inelegibilidade de detentor de cargo eletivo que renuncie, desde a apresentação de petição, foi considerada inconstitucional por Fux, embora considere ser “salutar e necessário” que, no Direito eleitoral, seja impedido o abuso do direito de renúncia, para não dar guarita “ao mandatário que, de má fé, renuncie ao seu cargo para escapar de julgamento”.
O relator considerou um exagero da lei considerar que uma “mera petição” possa determinar o início da inelegibilidade, e propôs que a renúncia implique a inelegibilidade somente quando o processo de cassação já estiver instaurado.
Tudo indica que a maioria do Supremo seguirá o voto do relator, mesmo que com eventuais divergências, mantendo o espírito da Lei da Ficha Limpa, que entrará em vigor já para a eleição municipal de 2012.
Fonte: O Globo, 10/11/2011
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