O termo ainda nem era usado na época, mas a cidade em que se passava a história dos Jetsons, famoso desenho animado criado na década de 60, era certamente uma smart city. Os carros eram voadores, havia telas por todos os cantos e robôs faziam as vezes de humanos (lembre-se de Rosie, a doméstica). Cinquenta anos depois e a smart city de hoje, no entanto, está (e provavelmente sempre estará) distante disso. Porque o que define uma smart city não é a quantidade de recursos “futurísticos” nela presentes. “Cidade inteligente é aquela que consegue resolver seus problemas com auxílio de tecnologias avançadas”, diz Vitor Amuri, advogado e fundador do think tank Soluções Públicas Inteligentes (SPIn).
Internacionalmente, locais como Tel Aviv e Barcelona ilustram bem como recursos tecnológicos podem ser usados para melhorar a vida dos cidadãos. Na cidade espanhola, as lixeiras têm sensores que monitoram a quantidade de lixo depositada nelas, o que resulta em uma coleta eficiente. Na cidade israelense, câmeras inteligentes em vias públicas facilitam o trabalho da polícia.
No Brasil, apesar da usual demora na adoção de tecnologias, alguns exemplos, ainda que tímidos, começam a surgir, no interior de São Paulo e no Paraná. E o ponto de partida dessas iniciativas, segundo Amuri, são as parcerias público-privadas. “As PPPs são o melhor caminho para as cidades chegarem ao status de cidade inteligente”, diz o advogado, que lançou recentemente o livro “Parcerias público-privadas para smart cities”. Gestões públicas ineficientes, para ele, não impedem a criação de cidades inteligentes no Brasil. Em conversa com “Época Negócios”, ele explicou como o país pode chegar lá.
Sabe-se que, para um cidade se tornar inteligente, ela precisa do poder público. Estamos condenados, portanto, a nunca termos smart cities no Brasil?
Historicamente, o poder público brasileiro sempre se distanciou de tecnologias avançadas. Ele nunca foi tão habilidoso em consumir as boas tecnologias. Há diversas razões para isso. Vamos analisar alguns exemplos, começando pela semaforização (controle dos semáforos de uma cidade). Hoje, existem no Brasil inúmeras soluções, chamadas de semaforização inteligente, em que o semáforo programa automaticamente o tempo de abertura e fechamento de acordo com o fluxo de veículos. Essa tecnologia já está disponível há mais de 10 anos internacionalmente. Por que só agora ela começa a ser usada no Brasil? Porque, por exemplo, você tem um fabricante de semáforos tradicionais que consegue influenciar o poder público a continuar comprando dele e a seguir solicitando a manutenção do semáforo burro. Quanto às luminárias, por que no Brasil a gente tem luminárias de sódio e mercúrio em vez de luminárias LED? Porque você tinha um baita de um interesse das distribuidoras de energia elétrica para que as luminárias continuassem sendo de sódio e mercúrio, e elas consomem 50% a mais de energia elétrica. Então, há alguma falhas estruturantes, além da má-fé.
Como mudar isso?
O que acontece é que o poder público, em regra, não deve fabricar nada nem produzir nada. Ou seja, ele deve adquirir bens e serviços. A conclusão à qual a gente pode chegar é que o que vai mudar, para cidade se tornar inteligente, é a forma como o poder público consome essas boas tecnologias. Um poder público que seja medíocre, ele pode ter cidade inteligente? Pode. Como? Por meio de uma parceria público-privada (PPP). A PPP nada mais é do que um contrato de concessão. Um paralelo, para você entender: o estado de São Paulo tinha rodovias muito ruins no passado. Ele passou a ter rodovias boas a partir das concessões, quando uma empresa privada tomou aquela responsabilidade, junto com o direito de cobrar o pedágio, e usou da sua habilidade de gestão para melhorar aquela infraestrutura e a gestão da infraestrutura, seja nos investimentos seja nos serviços prestados na rodovia. O mesmo pode acontecer na cidade inteligente. Mesmo com a falta de habilidade do poder público municipal em gerir, se ele fizer uma parceria público-privada (estabelecendo uma relação contratual) com um bom gestor de infraestruturas públicas, ele pode chegar ao status de cidade inteligente mesmo tendo um prefeito que nunca tenha ouvido falar de semáforo inteligente.
Mas de que forma exatamente a PPP pode ajudar o poder público na criação de uma cidade inteligente?
O primeiro fator a ser considerado é a financiabilidade. É praticamente impossível, em um mandato só, transformar a cidade em smart city. O dispêndio que se tem de verba pública para comprar luminárias LED para a cidade inteira, semáforos inteligentes para a cidade inteira, câmeras de vigilância, sensores de presença, sensores de tráfego, sensores de lixeira, software para gestão, todas essas coisas que permeiam a cidade inteligente, tudo isso acaba sendo caro para o município, que tem orçamento limitado. Como tornar os projetos financiáveis, então? Na PPP, o privado fica encarregado de fazer os investimento por sua conta. É ele quem vai se endividar e que vai buscar dinheiro com banco e acionista durante todo o prazo do contrato.
O segundo fator é o aspecto da integração tecnológica. Se o poder público decide comprar, sem auxílio de PPP, luminária, semáforo, câmera e software com empresas diferentes, o risco de o semáforo não conversar com a câmera, de a câmera não conversar com a luminária e de o software ser impróprio para isso é muito grande. Integrar essas estruturas pressupõe um conhecimento técnico que muitas vezes o poder público não tem. O terceiro fator é o prazo. Para fazer uma smart city acontecer em vias tradicionais, que envolveria articulação entre as secretarias e investimento em profissionais, o município levaria muito tempo. A empresa privada, se responsável pela smart city, terá estímulo a entregar essa estrutura operacional rapidamente, porque ele só começa a receber depois que começar a operar.
Há algum município no Brasil que já tenha fechado parceria com empresas privadas a fim de criar uma cidade inteligente?
Sim. Itatiba, no estado de São Paulo e Guarapuava, Dois Vizinhos e Maringá, no Paraná, são quatro exemplos de cidades que ainda não completaram as PPPs, mas já iniciaram o processo de estruturação de parcerias multisserviço (ou seja, empresas privadas vão ser encarregadas de fornecer várias soluções a elas).
Há vários tipos de tecnologia que uma cidade pode adotar para se tornar uma smart city. Essas cidades que você mencionou estão começando por onde?
Pela iluminação. Aliás, existe um aspecto-chave nessa discussão: a iluminação pública é o ponto de partida para a smart city. No Brasil, a estrutura de iluminação pública foi, historicamente, gerida pelo ator errado. É um serviço público que sempre foi reconhecido como sendo de competência da municipalidade, certo? Mas quem sempre prestou esse serviço, sem qualquer interferência do município, foi a distribuidora de energia elétrica. E o que quer a distribuidora de energia elétrica? Ela quer que a luminária consuma cada vez mais energia, e não que seja eficiente. Nesse modelo, a distribuidora recebia dinheiro, mês a mês, do município. Ela mandava a conta para a prefeitura. Ela não tinha incentivo nenhum para colocar LED, apesar de o LED ter surgido há muito tempo. E era ela que tinha a obrigação, estabelecida em contrato de concessão federal, de gerir a iluminação pública. Mas em 2015 entrou em vigor a resolução 414 da Aneel (Agência Nacional de Energia Elétrica), que determinou: “distribuidoras, transfiram os ativos de iluminação pública para os municípios”. Como alguns municípios não tinham dinheiro ou corpo técnico para bancar um programa de modernização de LED, eles optaram por PPPs só para iluminação pública.
Mas de que forma a luminária de LED abre espaço para a criação da smart city?
A luminária de LED, para funcionar do jeito que ela tem que funcionar — melhorando a eficiência energética — , ela precisa de uma estrutura que se chama telegestão. É ela que permite controlar a luminária para que, por exemplo, em um dia em que o pôr do sol aconteça só às 8 da noite, o que é frequente num país tropical, ela seja “dimmerizada” em 30% (ou seja, luz mais fraca porque ainda não está muito escuro). Da mesma forma, em uma rua em que o sensor de presença mostra que não tem ninguém às 3h da manhã no local, a luminária fica só a 30%. Mas toda essa telegestão tem um fator que chega a ser mágico. Se a luminária está em todo lugar, em todas as vias públicas, e está sendo controlada pelo poder público, por que não usar a mesma estrutura para gerir também semáforos, câmeras…? A ideia é que a telegestão das luminárias seja o veículo para transitar dados de qualquer estrutura urbana. Pela mesma rede, você conseguiria controlar luminárias, câmeras, sensores de presença, sensor de lixeira…. A rede inteligente municipal, que começa com as luminárias e aí se expande para semáforo, é o veículo da smart city. E isso está acontecendo no Brasil por conta desse movimento de municipalização da iluminação.
Já há câmeras instaladas hoje em diversos pontos. As câmeras dessa rede inteligente seriam diferentes?
Sim, não falo de qualquer câmera. As câmeras de vigilância da smart city têm um software que filma o que merece atenção do poder público. Isso é importante, porque em município pequeno, não dá para ter um centro de controle inteligente com muitos funcionários. Não faz sentido que esses servidores fiquem buscando ocorrências sendo que já existem tecnologias que permitem avisar que algo está errado naquela imagem. Por exemplo: uma motocicleta assaltando um carro numa via pública. Se a câmera está programada nesse sentido, ela consegue avisar àqueles servidores que existe uma movimentação estranha de uma motocicleta que está acompanhando um carro por mais de 10 segundos. Poderia avisar também quando alguém abandona um objeto. Ou seja, é informação de qualidade.
Quais são os melhores exemplos de smart city no mundo?
O principal exemplo e que liderou esse movimento mundial é Barcelona, que foi eleita smart city pelo Parlamento Europeu por um projeto que usava iluminação pública como veículo para sensores ambientais — instalados nas próprias luminárias —, totens nas vias públicas e recargas de veículos elétricos. Tel Aviv, em Israel, desenvolveu um projeto de smart city com enfoque em segurança pública. Lá, as luminárias também serviram como um veículo para que as câmeras de segurança pudesse transitar dados e alertas entre as autoridades de segurança pública e isso transformou o tempo de ação policial de cerca de 15 minutos para dois minutos. Diante de uma ocorrência, hoje, Tel Aviv leva dois minutos para dar uma resposta efetiva, seja com um agente comparecendo ao local suspeito seja com um helicóptero.
Fonte: “Época Negócios”, 29 de maio de 2017.
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