Não é tarefa simples a construção de uma grande sociedade aberta. Mas é inegável que somos hoje um grande canteiro de obras. Prosseguem as quedas de ministros envolvidos em denúncias de corrupção. A opinião pública apoia a presidente Dilma Rousseff em sua intolerância com as práticas políticas degeneradas expostas pela mídia.
Os anjos caídos sempre se escudam em ameaças à governabilidade. Seus ressentimentos podem se traduzir numa eventual retirada de apoio parlamentar e negociações mais duras à frente para a aprovação de projetos importantes. Mas, se o governo não quer ser pautado pelo noticiário e precisa de sustentação no Congresso, tem também o bom-senso de deixar claro que não aprova as manobras lamacentas de nossas criaturas do pântano.
O brasileiro não é geneticamente corrupto nem a democracia dos governos representativos está condenada à corrupção. O problema brasileiro é uma transição incompleta para as instituições de uma sociedade aberta. A esquizofrenia financeira e a estagnação econômica nos tempos da hiperinflação, bem como a corrupção política ainda hoje, são sintomas de desacertos na rota de fuga do Antigo Regime.
A concentração de poder corrompe. Só um governo com poderes limitados pode ser decente. O que se vê não é uma conspiração da mídia. É a construção de uma sociedade aberta sendo registrada pela mídia. É claro que, nesse processo, há um aperfeiçoamento. Tínhamos antes os escândalos “temáticos”: o impeachment de um presidente, os Anões do Orçamento, o mensalão, os Sanguessugas, a Operação Navalha e outras mais.
Como a exposição temática dos atos de corrupção teve poucos efeitos práticos, entramos em nova fase, a da “guilhotina midiática”, que pega um pescoço de cada vez. Pode-se dizer da classe política brasileira o que registra a historiadora Barbara Tuchman em seu clássico A marcha da insensatez (1984), a propósito dos papas renascentistas: “Eles se recusaram a mudar, mantendo com estúpida teimosia o sistema corrupto existente. Não podiam mudar porque eram parte, cresceram e dependiam da corrupção. A ambição, o abuso de poder e a certeza da impunidade dirigiam seu comportamento”.
Para a historiadora, um importante critério para que uma prática política seja considerada erro histórico, atuando contrariamente aos interesses da população, é que essa mesma prática equivocada seja implementada por vários grupos, durante longo tempo, não apenas por um indivíduo em curto período. Ora, a social-democracia brasileira, dos grandes partidos de “esquerda” – PMDB, PSDB e PT –, reveza-se no poder há sete mandatos presidenciais, com uma breve interrupção do presidente que sofreu impeachment… por corrupção?
Existe uma linha lógica que costura os fatos nos últimos 40 anos de nossa história. Os militares no Antigo Regime e a social-democracia hegemônica desde a redemocratização empurraram os gastos públicos de menos de 20% para quase 40% do Produto Interno Bruto (PIB) brasileiro. Infelizmente, a hipótese de corrupção sistêmica tem aqui suas raízes profundas, penetrando muito além da superfície política. Envergonhou os militares, devastou a “direita fisiológica” e desmoralizou sucessivamente os partidos de esquerda, lançando-se do subsolo econômico por uma deformação fundamental do Estado brasileiro.
Um segundo critério para detecção dos grandes erros históricos é uma percepção contemporânea do equívoco, e não apenas em retrospectiva. Ora, temos todos – desde a fase dos escândalos “temáticos” à atual “guilhotina midiática” – a inequívoca percepção contemporânea de que houve uma degeneração das práticas políticas. E sabemos também que, sem uma reforma política, permaneceremos com o mesmo sistema disfuncional que tem empobrecido o desempenho do regime democrático.
Mas, se a reforma política não pode nascer em ninhos social-democratas, se eles não têm competência para fabricar uma maneira decente de fazer política e se o vazio de sua agenda reduz a vida pública a uma sinuosa batalha por recursos, como escapar a essa armadilha de baixo desempenho? É necessária uma alternativa liberal democrata – que, lamentavelmente, não vislumbramos ainda.
Fonte: revista “Época”
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