Agrofalácias 2 – Sobre agriculturas e agricultores
Falsas dicotomias prosperaram no Brasil dividido dos últimos anos. Professores do ensino médio de escolas de São Paulo chegam a dividir as classes, com metade dos alunos argumentando a favor do “agronegócio” e a outra metade a favor da “agricultura familiar”. Essa mesma divisão absurda e sem sentido é vista na mídia e na política.
No segundo texto da série “agrofalácias”, quero tratar da taxonomia de agriculturas e agricultores que proliferou no País sem nenhum rigor analítico: agronegócio versus agricultores familiares, grandes versus pequenos produtores.
No artigo anterior, procurei mostrar que agronegócio é apenas uma delimitação do conjunto de cadeias de valor formadas a partir de produtos agropecuários: indústrias de máquinas e insumos, agricultores de todos os tipos e tamanhos, agroindústrias processadoras, armazenadores, distribuidores, varejistas etc.
Nesse contexto, tamanho físico não é documento para participar ou não do agronegócio. Agricultores com menos de 20 hectares integrados às indústrias de frangos e suínos são parte ativa do agronegócio, assim como os pequenos que vendem hortaliças, flores, cachaça e queijos artesanais.
Já grandes propriedades improdutivas ou pequenos agricultores de subsistência, que não geram excedentes comercializáveis, não fazem parte do agronegócio.
Ocorre que 99% dos agricultores brasileiros têm gestão familiar. E o conceito básico para separar agriculturas e agricultores não deveria ser o tamanho da propriedade ou o número de pessoas que ela emprega, como na atual definição de “agricultura familiar” da Lei brasileira. Deveria, sim, ser a rentabilidade e a capacidade de inserção de cada agricultor nas cadeias de valor do agronegócio.
Em outras palavras, o que interessa não é se o agricultor é grande ou pequeno, se emprega ou não, mas sim a sua capacidade de empreender, de gerar excedentes e lucros, de se inserir nos mercados.
No excelente livro “História do Brasil com empreendedores”, Jorge Caldeira mostra o papel do empreendedor no desenvolvimento do Brasil, com uma abordagem inovadora em relação à historiografia tradicional, pautada pelo latifúndio escravocrata exportador, da casa grande versus senzala, da metrópole versus colônia.
Caldeira mostra que tivemos um mercado interno forte e robusto no Brasil colonial, sustentado por uma grande quantidade de pequenos, médios e grandes empreendedores independentes, na maior parte do tempo lutando contra a ação deletéria do governo.
Na agricultura do século 20 acontece o mesmo: imigrantes viraram “colonos” no Sul e no Sudeste do país, que mais tarde migraram para o Centro-Oeste em busca de escala para sobreviver. A pequena propriedade do colono no Sul vira a grande plantação de hoje no Centro-Oeste. O migrante italiano que veio colher café vai produzir cachaça em alambique próprio e depois constrói as grandes usinas sucroenergéticas de hoje.
Pode parecer chocante, mas a história recente da agricultura brasileira pouco tem a ver com as capitanias hereditárias e os velhos barões do açúcar e do café. Sua gênese reside na migração, na inovação tecnológica do último meio século, no empreendedorismo e na integração das cadeias produtivas.
São esses os fatores que construíram a revolução agrícola tropical brasileira. Os que fizeram parte dela cresceram e se tornaram globais. Os que ficaram de fora, sejam eles grandes ou pequenos, barões ou produtores de subsistência, latifundiários ou assentados ineficientes, já saíram ou vão sair do (agro)negócio.
Foi o empreendedorismo que permitiu aos agricultores brasileiros sobreviver no mercado global, ainda que o Brasil nunca tenha reconhecido o seu papel histórico e social. A história brasileira é contada pelo lado dos coronéis, dos governantes corruptos, dos escravos e dos índios. Raramente se fala dos italianos, dos japoneses, dos gaúchos e dos paranaenses que cresceram, desbravaram e se tornaram globais.
Fonte: “Folha de S. Paulo”, 4 de fevereiro de 2017.
No Comment! Be the first one.