A lei é universal, menos para quem tem prerrogativas, garantias, privilégios e elos com poderosos. Capacidade infinita de singularizar é brasileirismo contra democracia
Somos refinados nas nossas classificações sociais. Tanto que o termo “desclassificado” tem, paradoxalmente, sentido negativo entre nós.
Fui classificado como um “desclassificado” por uma professora porque ruminava uma americanalhada goma de mascar em plena sala de aula. Eu me imaginava pilotando um avião de caça, enquanto a mestra me via como um projeto de bandido.
Somos tão sofisticados nas nossas hierarquias que dissolvemos o espaço entre a verdade e a mentira. Contada por um amigo, a mentira vira verdade, e deslavadas mentiras viram dúvidas na boca dos poderosos. Coberta pela capa carnavalesca da malandragem a esperteza, somente agora começa a ser politizada.
Nossos brasilianismos, conforme escrevi num livro que ninguém leu, são legião. Vão do foro privilegiado ao recurso, e daí a prescrição do crime. É o brasileiríssimo jeitinho aplicado à lei para driblar a Justiça.
Num extremo, temos o “fino” ou o “educado” — a pessoa de “boas maneiras” e “bons modos”. No outro, há o “grosso” — o “boçal”. Graças às nossas ambiguidades, confundimos perversão administrativa com esperteza e assim conseguimos duvidar da honestidade como um valor. O resultado é a psicopatia governamental.
O “boçal” sem lenço e sem documento foi o africano recém-chegado para cumprir o seu brilhante destino de escravo. Não tem protetor, padrinho ou amigo até ser devidamente comprado por um senhor. Então, recebe um documento e, com ele, a sua primeira relação. O “papel” ou documento é a prova de um laço — com o Estado, profissão, gênero, etnia, local de nascimento ou território — e, acima de tudo com pessoas aglutinadoras de privilégio dentro de uma minuciosa e zelosa hierarquia. O escravo ou o motorista do governador não podem ser castigados ou multados.
De tudo isso que constitui a nossa peculiar tonelagem legitimadora de múltiplas e supremas desigualdades. A lei é universal, menos para quem tem prerrogativas, garantias, privilégios e elos com pessoas poderosas. Nossa capacidade infinita de singularizar é um brasileirismo contrário à democracia.
Os boçais (de ontem e de hoje) não tinham nada, exceto a sua ausência de relações com pessoas, instituições e lugares. Eram, pois, fantasmas ou mortos, como sugere Orlando Pattertson no livro “Escravidão e morte social”, um estudo bom demais para ser lido por nossa revolucionária intelectualidade.
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— O Brasil gosta de boçais!
Afirmou com agressividade Roy Rant, jovem brasilianista num seminário de exilados acadêmicos recentemente organizado pelo professor Richard Moneygrand em Wolf City, Wyoming, Estados Unidos. A frase denunciava um suposto neofascismo da polícia e da promotoria brasileiras na sua injusta perseguição ao PT. Era uma boçalidade prender a torto e a direito, como se os nossos governantes-meliantes estivessem furtando galinhas.
— Vocês podem discordar — reiterou Rant. — Mas o Brasil, definitivamente, gosta de boçais.
Aliás, complementou, a boçalidade é um brasilianismo. Pois, da perspectiva de um sistema de analfabetos e ignorantes, ela equivale a uma recusa ao enlace. Se os laços sociais estampados em documentos enredam, a boçalidade recusa o sistema.
— Concordo com você — retrucou um sério Richard Moneygrand.
De fato, continuou, sem uma predileção pela boçalidade, jamais Lula e Dilma teriam sido eleitos e metido o Brasil nisso que vocês (e ele olhou para mim) chamam de crise.
Ouvimos o silêncio.
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John Kennedy, que, com Barack Obama, foi um ator digno do papel de presidente do maior (mas não do melhor) país do mundo, completaria 100 anos se vivo estivesse. A melhor história sobre o filosófico “se” de sua ausência ocorreu em 21 de novembro de 1973, no encontro do primeiro-ministro australiano Gough Whitlam com o chairman Mao. Advertido de que Mao não gostava de papo furado, o ministro australiano, aproveitando que a data do encontro coincidia com a do assassinato de Kennedy, perguntou: “Se Nikita Sergeyevich Krushchev tivesse sido a vítima, como o mundo teria mudado?”. Ao que Mao respondeu, parcimoniosamente: “Penso que Mr. Onassis jamais teria se casado com a Senhora Krushchev”.
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E se o Brasil gostasse menos de boçais, nós, que não inventamos Donald Duck, teríamos eleito Donald Trump?
Fonte: “O Globo”, 07/06/2017
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