É uma bela foto. Um menino sem camisa, molhado e aparentemente com frio, assiste com o mar batendo nos joelhos, alguns metros à frente da multidão – que só molha os pés – a queima de fogos no réveillon de Copacabana. É uma imagem imediatamente impactante.
Como toda imagem, ou melhor, como toda obra, está sujeita às mais variadas interpretações. O que torna a fotografia documental um caso à parte é que, diferentemente da pintura, do cinema ou da fotografia de estúdio, nela a criação de uma imagem artística se dá sobre um evento que realmente ocorreu no mundo. E aí ela opera o truque, que é também sua força: confunde nossa interpretação da imagem com a descrição da realidade. E daí ela se torna não só uma obra impactante de se ver e boa de se discutir, mas também uma arma na discussão sobre a nossa sociedade.
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Se a mesma imagem fosse um quadro, poderíamos discutir os diferentes possíveis significados dele; algumas pessoas dariam o passo além de se perguntar o que o artista tinha em mente quando o pintou. Mas ninguém, em nenhum momento, diria que o quadro mostra algo diretamente sobre o Brasil. Ele mostra uma visão sobre o Brasil, e não o próprio Brasil. Com a foto, esse salto é muito mais fácil. E daí temos que a foto do menino escancara a realidade brasileira. Qual realidade? Pelas interpretações que correram a rede inicialmente, a realidade da segregação social e racial. Aquele menino pobre foi abandonado, ou mesmo expulso, pela elite que assistia os fogos e nem ligava para seu desamparo.
Há muitas outras leituras possíveis: a simplicidade da criança em oposição à dissimulação social dos adultos, em seus grupos e com seus smartphones; o menino como símbolo do Brasil, sonhando com seu futuro e com a alegria que os fogos prometem. E é claro que tudo isso são significados projetados nos fatos. O menino é só ele mesmo, assim como cada um de nós é apenas si mesmo, e não o símbolo de algo ou o representante de algum coletivo.
A interpretação, na verdade, fala muito mais sobre a pessoa que a faz do que sobre a realidade por trás da foto. Mais especificamente, é notável como uma boa parte de nossa esquerda não consegue olhar para um indivíduo negro e ver nele, não uma pessoa, mas um símbolo: um símbolo da pobreza, da desigualdade, do racismo, do sofrimento e, em última instância, da luta virtuosa que eles julgam protagonizar. Nem é preciso dizer que quem se comporta assim, tão cheio de convicções anti-racistas mas que tem dificuldades em ver o indivíduo antes da raça, costuma ser branco.
O fotógrafo Lucas Landau disse estar atrás da identidade do menino, de quem ele não conseguiu ouvir o nome na hora. Talvez seja um menino pobre e abandonado; talvez a família dele estivesse logo ali atrás (afinal, apesar de todo o papo de segregação racial que dizem ver na foto, há claramente negros entre os adultos que se divertem no fundão); talvez ele estivesse feliz da vida apesar do frio; talvez tenha ido mais fundo que os demais só para fazer um xixi. Será curioso descobrir mais a respeito dele (se é que a família e ele próprio desejam esse tipo de exposição e análise pública), mas rigorosamente, para fins de interpretar a foto, nada disso importa.
A foto continuará a mesma e o Brasil continuará o mesmo, seja o menino um favelado ou um privilegiado. A leitura que fazemos do Brasil com base em uma foto decorre apenas da imagem – um momento particular captado por um fotógrafo, que também tinha seus desejos e visões a expressar por meio dela – e não da realidade da qual ela foi captada.
E essa leitura está em nós. Uma foto que confirma nossa visão de mundo traz um alento: parece ser uma espécie de prova de que o Brasil realmente é do jeito que a gente quer que ele seja. Mas ela não tem esse poder. Nenhuma foto penetra além das imagens momentâneas; ela é apenas essas imagens, tanto quanto um quadro – a diferença é que, no primeiro caso, a imagem calhou de passar na frente da câmera, e no segundo foi construída desde seus elementos fundamentais pelo pintor.
O “ir além” da imagem para chegar a um significado mais profundo está em nós, e é nesse ir além que revelamos, não o Brasil, não relações sociais apenas imaginadas entre pessoas que provavelmente não se conhecem e nem sonhavam integrar um mesmo quadro, não a vida de um menino que segue incógnita e seus sentimentos – talvez irrecuperáveis até para ele – num momento específico, e sim a nós mesmos. Com nossas simpatias e inimizades, nossos preconceitos e nossos desejos.
A realidade segue em sua infinita complexidade e sinais contraditórios, prontos a serem pescados e usados. O mundo da política e das mudanças sociais não decorre diretamente dela, mas da percepção que dela fazemos – e que é tão ou mais mutável que o próprio mundo real. A fotografia opera aí. Que sirva para aprofundar discussões, e não para reafirmar, de maneira simplória, certezas e preconceitos já arraigados.
Fonte: “Exame”, 04/01/2018
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