Para coordenador da Campanha Nacional pelo Direito à Educação, Daniel Cara, controle social será ferramenta para qualificar o setor
Depois de três anos e meio de muita discussão, polêmicas, idas e vindas entre Câmara dos Deputados e Senado, foi finalmente aprovado o Plano Nacional de Educação (PNE). O texto final, que teve votação na noite desta terça-feira no Congresso, traz 20 metas ousadas que visam a um salto de qualidade no setor em até dez anos. Entre essas metas estão universalização do ensino básico, erradicação do analfabetismo, aplicação de 10% do PIB na área, além de valorização de professores. Coordenador da Campanha Nacional pelo Direito à Educação, o cientista político Daniel Cara acompanhou de perto a elaboração do PNE e participou das discussões para sacramentar o texto final. Nesta entrevista ao Globo, ele reconhece os desafios de se aplicar o plano, no entanto, garante que as metas são fundamentais para tirar o Brasil do atraso no setor.
O GLOBO – É possível confiar na aplicação concreta de um plano que, apesar de ter sido muito discutido, foi aprovado às vésperas de uma eleição?
Daniel Cara – Ele foi aprovado às vésperas da eleição em função de um intenso debate e culminou numa negociação longa, mas muito discutida. Fato é que o mundo político passa a tratar o PNE como sendo um acordo de responsabilidade de todos os partidos. Essa questão é boa no sentido de mostrar que nenhum partido queria ir para a eleição sem ter o plano aprovado. E nós soubemos jogar com isso. A sociedade civil, que é a grande vencedora, agora tem responsabilidade sobre o plano. Ele tem muitas vantagens, como os mecanismos de controle social que passam a existir.
Quais são esses mecanismos de controle social?
São vários, como relatórios de acompanhamento das metas, para verificar o seu andamento. O PNE dispõe de mecanismos para isso através dos dados oficiais do governo, por exemplo. As metas do plano obrigam o governo a gerar novos dados oficiais e um relatório bienal, o que não constava no plano anterior e era uma importante lacuna. Esse relatório vem para trazer clareza às etapas definidas.
Qual a garantia que esses 10% do PIB serão aplicados? Como é possível fiscalizar se não há punição prevista para descumprimento das normas?
Essa é a pergunta central do plano. A gente nunca descontextualizou isso das outras 19 metas. Melhor maneira de cumprir os 10% do PIB é cumprindo as outras metas do plano. É importante frisar que a gente propôs, já em 2010, na Conferência Nacional de Educação, a vinculação das receitas do petróleo ao PNE. Um tempo depois, o governo federal aparece e diz que é preciso vincular educação às receitas do petróleo. Mas o que importa não é de quem é a autoria da ideia, mas, sim, vencer as batalhas que vem por aí. O PNE está ancorado na Constituição Federal, e, para que ele seja bem feito, é importante que estados e municípios participem e sejam cobrados. É fundamental acompanhar os planos e ações dos governos estaduais e municipais. As pessoas ficam na expectativa de um “gestor Messias”. Não existe isso. Os pais têm que começar a participar, temos que ocupar os conselhos municipais de educação. O Brasil tem déficit de participação na educação. Mas nas 20 metas nós propusemos uma ponte entre o Ministério Público, os tribunais de conta e os conselhos de educação para fortalecer essa fiscalização.
Alguns pontos polêmicos ficaram de fora, como o que determina o combate à discriminação dentro de sala de aula por questões de gênero. Como avalia isso?
Uma das diretrizes do PNE na versão original, que tramitou na Câmara dos Deputados, chamava atenção para o combate à discriminação e enfatizava três pontos centrais: raça, gênero e orientação sexual. Todos que trabalham com educação sabem que esses são os pontos de maior desafio em um ambiente educacional e o que provoca mais bullying. Aí vieram os setores mais conservadores da igreja católica e evangélicos dizendo que não se pode tratar de questões de gênero e orientação sexual em projetos assim. Então, foi aprovado no Senado o plano constando que não se deve permitir a discriminação, mas de um modo geral. Houve um “cavalo de batalha”, retardou-se muito a discusão em função da polêmica. É uma pena ver que o Brasil está vivendo um “tsunami conservador”. Não foi raro ver padres e pastores destilando ódio à homossexualidade. Eles lotaram as galerias da Câmara para fazer essas colocações. Isso é algo desrespeitoso com os direitos humanos. Se esse tsunami conservador for vitorioso, ele pode colocar em risco os princípios individuais neste país.
Há um ponto no PNE que prevê a valorização salarial e a qualificação dos professores. Como cumprir isso?
Fazendo a reestruturação das redes públicas municipais e estaduais que são responsáveis pela educação básica. A constituição, no artigo 211, diz que cabe à União garantir a qualidade mínima. A meta é subir a média salarial dos professores e equalizar os valores com as demais profissões públicas. Hoje há muita defasagem entre os salários.
Como o PNE trata o principal gargalo da Educação, que, segundo especialistas, é o Ensino Médio? Não foi deixado um pouco de lado?
Não foi. O PNE, por exemplo, terá uma demanda de 1,5 milhão de matrículas até 2016 no ensino médio. Existe uma meta específica, a de número 3, para ele. E não acho que estejam certos os especialistas que dizem que o Ensino Médio é o maior gargalo. O problema está aí sim, mas também nos anos finais do Ensino Fundamental. O PNE não deixou nada de fora. Alguns críticos, que não acompanharam a discussão, dizem que o plano não determina prioridades. Mas nós consideramos que não dá pra priorizar um ou outro. Ou o Brasil faz o sacrifício em nome da Educação como um todo agora ou vai continuar atrasado na agenda de mudanças, que é urgente.
No quesito qualidade, estamos defasados até para países da América Latina. O PNE vem para diminuir essa lacuna. É esse o maior desafio?
Temos uma tradição educacional muito mais frágil do que Argentina, Chile e Uruguai, por exemplo. Estamos atrasados. Agora, o PNE vai fazer com que o Brasil recupere muito dessa distância e possa até mesmo passar o Chile, por exemplo, que tem a melhor situação. Mas só se houver sacrifício e controle social.
Mas não é utópico dizer que o controle social vai resolver?
Não. É preciso haver muita pressão da sociedade civil. No discurso todo mundo fala em educação como prioridade. Agora temos um plano em mãos para cumprir isso. O PNE em si parecia uma utopia e está aí, aprovado. De utopia em utopia a gente avança.
Fonte: O Globo
No Comment! Be the first one.