Passando em revista nossas origens, um tema comum a muitos historiadores é a formação de uma sociedade fundada sobre o privilégio. No começo, quando se forma o que Jorge Caldeira chamou de a nação mercantilista, não havia capital, nem trabalho, tampouco sociedade, mas apenas o Estado, criador de todos os privilégios, dentre os quais, inclusive, o direito de propriedade sobre outros seres humanos.
No Brasil nunca tivemos luta de classes de verdade; a tensão social sempre foi entre o Estado, ou seus donos, e a Sociedade, especialmente os brasileiros desprovidos de privilégio. Direita e esquerda pareciam atores de um enredo menor num país onde o Estado sempre soube definir-se como um fim em si mesmo, como uma encarnação falsificada da nação. O Estado sempre foi propriedade privada de poucos, e por isso Brasil nasceu e cresceu desigual. A maioria, ou o povo, esta entidade sem rosto, multidão silenciosa e amorfa, sempre foi coadjuvante da sociedade do privilégio e, basicamente, é gente demais para dividir a pouca riqueza existente.
A democracia de massa no Brasil é fenômeno muito recente, e seu aparecimento em meados dos anos 1980 tem a mais inesperada conseqüência: a hiperinflação. O leitor já parou para pensar por que a inflação vai de 100% anuais para 84% mensais de 1984 a 1989 durante os primeiros anos de democracia depois de três décadas de Ditadura?
A resposta para este enigma é simples: o povo quis participar da sociedade do privilégio, anseio absolutamente legítimo, pois se as políticas públicas eram dirigidas a setores “especiais” ou “estratégicos”, por que exatamente alguém, qualquer pessoa, deve ser excluído desta categoria? Por que apenas alguns e não todos não são merecedores das benesses do Estado?
Os primeiros anos da nossa democracia de massa produziram a hiperinflação por que a dinâmica política foi a de “incorporar” todo mundo que aparecesse, todos que quisessem podiam ter a sua emenda no orçamento, a sua “conquista” consagrada na Constituição, seu programinha de apoio no contexto da “política industrial”, todo o país passou a ser “estratégico”, e por força do princípio da isonomia, todos passaram a merecer o direito a algum pequeno cartório pelo menos igual ao do vizinho. Todos se tornaram credores do Estado, e portanto cobradores implacáveis da dívida social.
O novo Estado democrático, diante destes anseios, adotou um modelo de “clientelismo de massa”, cujo espírito ainda permanece muito vivo, e que consiste em estender a todos os brasileiros algum privilégio, via orçamento, ou via regulação, por que todos têm direito. É o espírito (da Constituição) de 1988.
Todavia, como o Estado não é criador de riqueza, apenas um veículo de transferência, o modelo rapidamente se revelou impraticável. O nobre propósito de “incluir os excluídos” a qualquer custo, acabou corrompido pelo fato de que o dinheiro advinha da tributação do próprio “excluído” através da inflação. Ou das futuras gerações através de dívidas crescentes.
Todos têm direito, mas simplesmente não é possível conceder tantos privilégios a tanta gente; não vamos acabar com a sociedade do privilégio multiplicando direitos e privilégios de forma irreal.
Com efeito, quem vai terminar com a sociedade do privilégio é a economia de mercado, e não é outro o motivo pelo qual a estabilização, a abertura, a desregulamentação, e a privatização geraram tantas tensões.
A economia de mercado é subversiva numa sociedade do privilégio pois propugna a competição, a impessoalidade e a Meritocracia, e dispensa, tanto quanto possível a interveniência de um Estado cheio de vícios.
Só uma verdadeira e bem urdida sociedade do privilégio consegue o prodígio de alijar a economia de mercado do sistema político-partidário, e consegue nos impor quatro candidatos a desancar o que chamam de “o modelo neoliberal”, cada qual propondo, em diferentes vestimentas, a extensão de novos privilégios e o crescimento do Estado.
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